20.6.07

AS SIMPLES COISAS DA MEMÓRIA

Por Baptista-Bastos
A LOJA DAS MEIAS era o espaço dos ricos e a montra dos pobres. Vai fechar no final de Agosto. O Rossio está lentamente a desaparecer, tal como o conhecemos. E o halo romântico que conferia à praça o encanto contagiante de ser um lugar de encontro tornou-se pálido e difuso.
N' O Cavalo Espantado, belo romance de Alves Redol, o Rossio é-nos narrado como uma espécie de território de liberdade, para os judeus fugidos do nazismo. E os miúdos dos bairros, atraídos pelos esplendores do proibido, por ali passeavam os seus assombros, observando as pernas e os decotes dessas mulheres que vinham de longe, desenvoltas e soberbas, a fumar e a conversar na esplanada da Suíça.
Do outro lado, no Nicola, velhos republicanos murmuravam terríveis maldições a Salazar. Chamavam ao local a Fronteira do Cuspo, alusão sarcástica a quem conspirava, apenas de frase feita. Lembro-me de ali ver o jornalista Carlos Ferrão, o lendário capitão Vilhena, o comandante Augusto Aragão, o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca, outros, que desenhavam o perfil de uma oposição formal, dispersa, absurda e confusa. Porém, gostava de os ver: sentia, na sua presença, a contida força da antiga honra.
Nos 1.º de Maio e nos 5 de Outubro, o Rossio instituía a hipótese momentânea de que a liberdade não era uma ruína sem solução. Dava-se, a essas datas, o sinal de um protesto inconformado, na ideia de que, convergindo para ali os melhores de nós, o ar ficava mais limpo e as tardes mais formosas. A polícia cercava os protestatários, e as fugas e os morras ao fascismo eram sublinhados com espancamentos e prisões. Regressávamos a casa com nódoas negras, tingidos pela tinta azul dos canhões-tanques, mas sentíamo-nos nítidos, inteiros e definitivos.
Na esquina onde, há mais de cem anos, houve nome de Loja das Meias, conversou Fialho d' Almeida com a sua matula. A literatura cultivou, no Rossio, os seus afectos: cafés lendários deram guarida a poetas, jornalistas, pintores, prosadores neo e surrealistas.
Nunca entrei na Loja das Meias: os preços ultrapassavam, de longe, as módicas possibilidades do chefe nominal, que sou, de uma família numerosa e irremediavelmente empobrecida. Porém, contemplava as montras, e espreitava as suas empregadas, belas raparigas decididas, multicores e joviais. A morte daquela loja é sinónimo da lenta e dolorosa degradação da Baixa, à qual Maria José Nogueira Pinto queria obstar, com um plano de revitalização que li e me pareceu forte de convicções e humaníssimo de arrojo.
Não é, somente, um estabelecimento que desaparece. É um nome que vai ser apagado da toponímia da memória lisboeta.
«DN» de 20 de Junho de 2007 - [PH]

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4 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Julgo que o Comandante Aragão, aqui referido, veio a ser o Comodoro Aragão que, na Índia, comandava o navio Carvalho Araújo na altura da invasão.

Reza a lenda que ele mandou buscar o retrato de Salazar, mandou formar a guarnição, e o atirou para a água, dizendo «Vamos para o fundo, mas este filho-da-puta vai primeiro!».

Conheci-o em 1970, já depois de ter caído em desgraça, a trabalhar num pequeno cubículo algures na Doca do Bom Sucesso...

20 de junho de 2007 às 18:01  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Dei conta, ao autor do texto, do "comentário" anterior.

Confirma-me a história que refiro como lenda, e aproveita para corrigir o nome do Comandante Aragão: era António, e não Augusto.

20 de junho de 2007 às 19:45  
Blogger António Viriato said...

Baptista Bastos, na sua prosa tersa, varonil, acutilante, por vezes até ao osso, quando põe a sua fertilíssima memória de Lisboa a falar, deixa-nos sempre agradados.

Agora, que lhe vão passando aqueles acessos de fúria febrilmente anti-cavaquistas, desiludido da verborreia guterrista, inconsequente e fugitiva, como da ligeireza socrática, empertigada, mas trapalhona, que comprovam, à evidência, o vazio doutrinário, ideológico, destes supostos socialistas, que nem social-democratas conseguem ser, começa BB a corrigir o seu fulminante tiro crítico, alvejando alvos antes poupados. Que não lhe faltam munições, sabemos nós, lá onde outros se esquecem de mirar.

21 de junho de 2007 às 08:51  
Anonymous Anónimo said...

Esperemos que Baptista Bastos apareça por aqui mais vezes!

21 de junho de 2007 às 12:03  

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