AS SIMPLES COISAS DA MEMÓRIA
Por Baptista-Bastos
A LOJA DAS MEIAS era o espaço dos ricos e a montra dos pobres. Vai fechar no final de Agosto. O Rossio está lentamente a desaparecer, tal como o conhecemos. E o halo romântico que conferia à praça o encanto contagiante de ser um lugar de encontro tornou-se pálido e difuso.
N' O Cavalo Espantado, belo romance de Alves Redol, o Rossio é-nos narrado como uma espécie de território de liberdade, para os judeus fugidos do nazismo. E os miúdos dos bairros, atraídos pelos esplendores do proibido, por ali passeavam os seus assombros, observando as pernas e os decotes dessas mulheres que vinham de longe, desenvoltas e soberbas, a fumar e a conversar na esplanada da Suíça.
Do outro lado, no Nicola, velhos republicanos murmuravam terríveis maldições a Salazar. Chamavam ao local a Fronteira do Cuspo, alusão sarcástica a quem conspirava, apenas de frase feita. Lembro-me de ali ver o jornalista Carlos Ferrão, o lendário capitão Vilhena, o comandante Augusto Aragão, o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca, outros, que desenhavam o perfil de uma oposição formal, dispersa, absurda e confusa. Porém, gostava de os ver: sentia, na sua presença, a contida força da antiga honra.
Nos 1.º de Maio e nos 5 de Outubro, o Rossio instituía a hipótese momentânea de que a liberdade não era uma ruína sem solução. Dava-se, a essas datas, o sinal de um protesto inconformado, na ideia de que, convergindo para ali os melhores de nós, o ar ficava mais limpo e as tardes mais formosas. A polícia cercava os protestatários, e as fugas e os morras ao fascismo eram sublinhados com espancamentos e prisões. Regressávamos a casa com nódoas negras, tingidos pela tinta azul dos canhões-tanques, mas sentíamo-nos nítidos, inteiros e definitivos.
Na esquina onde, há mais de cem anos, houve nome de Loja das Meias, conversou Fialho d' Almeida com a sua matula. A literatura cultivou, no Rossio, os seus afectos: cafés lendários deram guarida a poetas, jornalistas, pintores, prosadores neo e surrealistas.
Nunca entrei na Loja das Meias: os preços ultrapassavam, de longe, as módicas possibilidades do chefe nominal, que sou, de uma família numerosa e irremediavelmente empobrecida. Porém, contemplava as montras, e espreitava as suas empregadas, belas raparigas decididas, multicores e joviais. A morte daquela loja é sinónimo da lenta e dolorosa degradação da Baixa, à qual Maria José Nogueira Pinto queria obstar, com um plano de revitalização que li e me pareceu forte de convicções e humaníssimo de arrojo.
Não é, somente, um estabelecimento que desaparece. É um nome que vai ser apagado da toponímia da memória lisboeta.
«DN» de 20 de Junho de 2007 - [PH]
Etiquetas: BB
4 Comments:
Julgo que o Comandante Aragão, aqui referido, veio a ser o Comodoro Aragão que, na Índia, comandava o navio Carvalho Araújo na altura da invasão.
Reza a lenda que ele mandou buscar o retrato de Salazar, mandou formar a guarnição, e o atirou para a água, dizendo «Vamos para o fundo, mas este filho-da-puta vai primeiro!».
Conheci-o em 1970, já depois de ter caído em desgraça, a trabalhar num pequeno cubículo algures na Doca do Bom Sucesso...
Dei conta, ao autor do texto, do "comentário" anterior.
Confirma-me a história que refiro como lenda, e aproveita para corrigir o nome do Comandante Aragão: era António, e não Augusto.
Baptista Bastos, na sua prosa tersa, varonil, acutilante, por vezes até ao osso, quando põe a sua fertilíssima memória de Lisboa a falar, deixa-nos sempre agradados.
Agora, que lhe vão passando aqueles acessos de fúria febrilmente anti-cavaquistas, desiludido da verborreia guterrista, inconsequente e fugitiva, como da ligeireza socrática, empertigada, mas trapalhona, que comprovam, à evidência, o vazio doutrinário, ideológico, destes supostos socialistas, que nem social-democratas conseguem ser, começa BB a corrigir o seu fulminante tiro crítico, alvejando alvos antes poupados. Que não lhe faltam munições, sabemos nós, lá onde outros se esquecem de mirar.
Esperemos que Baptista Bastos apareça por aqui mais vezes!
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