1.7.07

UM EURO 2007

Por Nuno Brederode Santos
FURTIVA, MAS INSINUANTE, é a tese, que vem fazendo o seu caminho, segundo a qual, obtido o "mandato claro", o sucesso da presidência portuguesa da EU estaria assegurado.
A ideia é, de facto, tentadora. Nas áreas da oposição (que já declararam, e bem, que não deixarão de o ser durante o nosso semestre de protagonismo europeu), como nas áreas do poder (que já declarou, e bem, que não esmorecerá na governação), ela tinha os seus encantos de circunstância. As primeiras sacudiam a pressão "consensualista" e "patriótica" que as poderia manietar até Dezembro. E esvaziavam desde já o capital político que para o Governo sempre advém de uma presidência conseguida. O Governo, esse condicionava totalmente o seu desempenho ao êxito dos alemães, esconjurando as responsabilidades portuguesas ante um hipotético malogro alemão em Junho.
Mas agora que tudo isto passou, a tese é, pelo menos, incómoda. Com a singela excepção daqueles que estão mal na Europa (onde a sua influência política é marginal), todos os mais terão de corrigir o tiro. Rapidamente, porque os desmentidos irão suceder-se, ao bom ritmo que as digestões a 27 proporcionam. Porque aos desafios recentes de uma Europa a 15, que ainda podia facilmente engolir, vai sucedendo gradualmente a filigrana de interesses, suspeições e contradições dos 27. Esta evoca irremediavelmente a digestão dos bovinos, que, segundo as aulas da minha juventude, era uma linha de desmontagem interminável, formada por bandulho, barrete, folhoso e coalheira. Fazia-me sempre pensar que, à chegada do clímax escatológico, já o boi devia estar desesperado.
O primeiro aviso chegou já, ainda antes de Portugal se sentar: o Governo polaco quer "clarificar" que o mecanismo de possível atraso na tomada das decisões é de dois anos. Parece que ninguém reteve tal ideia das negociações. E o primeiro-ministro português já lhe chamou "mal-entendido" (que é a tal palavra que usam para divergir duas pessoas que reciprocamente se entendem muito bem). Mas este aviso ilustra bem as contingências do mandato: entre outros perigos, ele está à mercê do imprevisível, como é o errático comportamento dos monozigóticos de Varsóvia (que querem arvorar em critério político os desmandos de uma guerra cuja superação foi o primeiro fundamento da aventura europeia).
Goste-se dele ou não, o óbvio é que qualquer alteração ao delicado e minucioso equilíbrio, há poucos dias conseguido, teria um efeito centrífugo devastador. Uma hipotética nova vantagem polaca, no sistema de votação acordado, teria de ser (legitimamente) reivindicada pela Espanha e quase fatalmente essas duas alterações obrigariam à renegociação dos próprios critérios gerais, ou seja, do voto de todos. E encorajaria o Reino Unido a repor toda a extensão das suas objecções. Fazendo com que tudo voltasse à estaca zero, para renegociação de todas as quase inconciliáveis pretensões nacionais dos 27. (Ou pior: 26, porque um pequeno país na presidência talvez ganhe capacidade para impor valores que lhe convenham, mas perde capacidade para defender interesses concretos próprios).
Acresce a isto um factor que nos espreita: é que Jaroslavs, Lechs e demais não ignoram que negociar com um país à nossa escala não é o mesmo que negociar com a Alemanha. A nossa força é a do mandatário, quase a do mero portador de (más) notícias a todos os descontentes. No que diz a Alemanha, antevê-se uma decisão. No que diz Portugal, antevê-se uma proposta.
O que aí vem é complicado. Porque não são só as toneladas de papel e os trabalhos a desoras, mais os equívocos de tradução do costume. Para isso bastaria a tarimba adquirida pelos apátridas de Bruxelas. Nem requer só a (preciosa) habilidade dos diplomatas. O que aí vem joga-se sobretudo na pujança de alma dos políticos. Coisa que só podem ter com um forte respaldo interno. E este, só o terão se apostarem na transparência democrática e se acreditarem que vale a pena trabalhar com todas as instituições e oposições interessadas. Se tanto for preciso, finjam que é um Euro 2007.
«DN» de 1 de Julho de 2007

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