30.6.07

PEDRAS À SOLTA

Viagem de autocarro
Por Carlos B. Esperança
ONTEM, ENTREI NUM AUTOCARRO com um padre católico sentado no banco ao lado do meu, do outro lado da coxia.
Olhei aquele rosto triste de um homem de 70 anos, com o colar romano a apertar-lhe o pescoço como o cincho onde se estreita o queijo para extrair o soro. Há muito que não via tal adereço na via pública. O uso manteve-se com a resignada dedicação ao múnus.
Não pude deixar de apreciar aquele homem só, a caminho de uma casa da Igreja ou de um ritual que perdeu o sentido e de que a sociedade se desinteressou.
Que sofrimento ajudou a desenhar aquelas rugas? Quantos desejos reprimidos e quantos anos perdidos com o pescoço apertado por um colar e a lapela ornada com uma cruz?
Terá amado, teve sonhos, realizou-os? A meu lado um cidadão, sozinho, levava os olhos vazios e o ar de quem cumpriu a vida sem a viver.
Era preciso ser cínico ou mau para não sentir compaixão por quem dedicou o tempo e a juventude a uma quimera, perdeu a vida perseguindo o sonho do Paraíso e chega ao fim da estrada sem saber por que a percorreu.
Somos ambos da mesma massa. Com poucos anos de distância ensinaram-nos a ajoelhar e a rezar. Eu levantei-me, ele ficou de joelhos. Eu vivi a vida, amei e passei incógnito na estúrdia, sem um colar a que só falta a trela e sem a cruz a que não faltaram espinhos. Ele imolou a vida por um mito e esqueceu-se de si próprio por coisa nenhuma.
É injusto que aquele homem que sofreu o que eu não sofri, que trocou a vida por outra que não existe, tenha os mesmos sete palmos de terra à sua espera sem um filho que lhe recorde o nome ou guarde o retrato. Por um deus que inventaram para lhe tramar a vida.

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Será que não consegue mesmo imaginar uma vida diferente como a do padre?
Viveu-a de modo muito diferente da sua, com certeza. Não significa que a mesma não tenha um grande valor.
Também há muita gente que pode ter "vivido muito" e que também não tem "filho que lhe recorde o nome ou guarde o retrato".
Mesmo que Deus não exista, há valores transmitidos como se fossem os divinos e isso é que é importante reter.

Agora... se a questão aqui é acerca da existência ou não de um Deus... isso é outra longa história e podemos deixar o padre em paz.

1 de julho de 2007 às 07:53  

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