16.8.07

A VINGANÇA DOS TELLES

EM 25 DE ABRIL DE 1974, soube que estava em curso um golpe quando o filho lhe telefonou, alarmado, às oito e dez da manhã. Informou do facto a mulher, benzeu-se e rezou duas ave-marias e dois padre-nossos por intenção de alguns amigos que tinha no Governo e de outros que trabalhavam na Polícia. Depois, ligou o rádio, vestiu-se e ficou de colete, corrente de ouro atravessada no ventre chato e pérola na gravata negra, a ouvir as notícias da telefonia, sem dizer uma palavra, balançando o sapato bem engraxado e feito à mão, por medida, ao compasso das marchas militares. Só voltou a falar quando a mulher, subitamente apreensiva, lhe perguntou em lágrimas e com tremuras na voz:
- E a ti, a ti que irão estes malandros fazer?
- A mim, nada querida. Que hão-de eles fazer? Sim, que hão-de eles fazer?! Sou um empregado bancário irrepreensível, com uma discreta posição na Legião, nada mais... Que queres tu que eles façam, filha?! Sim, que hão-de eles fazer?!
Calou-se ao pensar que até ali, desde o telefonema do filho às oito e dez da manhã, e já eram quase horas de almoço, não tinha sequer pensado em ir ao banco ou apresentar-se na Legião.
Por um momento, ficou na dúvida se deveria ir ou não ir à Legião. Se os revoltosos ganhassem, seria pior a emenda que o soneto. Mas se perdessem, poderia prejudicar-se.
- Ó Telles, onde raio se meteu você quando foi preciso lutar pela causa?
Não. Não iria ao banco. E decididamente, também não poria os pés na Legião. Os rapazes da DGS lá estariam para resolver a situação e, sem dúvida, que a Senhora de Fátima os não iria desamparar em mais aquele momento de aflição.
Foi com estes pensamentos reconfortantes que vestiu o casaco, pôs o chapéu e saiu para a mercearia que ficava a duas portas da sua casa, naquela rua esconsa de bairro social pacato. Comprou conservas e outros géneros que lhes durariam até ao Natal daquele ano da Graça do Senhor, simultaneamente ano I da revolução que não chegaria a consumar-se, segredo que não seria estranho, naquela hora, à Senhora de Fátima mas que ele, Justino Telles, não podia na altura adivinhar.
No dia 11 de Março de 1975, quase um ano depois da data dramática vivida junto ao aparelho de rádio, com as persianas corridas, Justino Telles, sessenta e três anos, funcionário superior de um respeitável banco que acabava de ser nacionalizado, tomava uma decisão que comunicaria à mulher no momento em que ambos puxavam até aos ombros as cobertas da cama D. João VI, com rosários de madre-pérola e crucifixos de prata a protegerem o alçado da cabeceira. Com a voz dramática das resoluções irreversíveis, Justino anunciaria, inabalável:
- Cristina, vou reformar-me.
Um suspiro cansado, mas de alívio, antecedeu a resposta da senhora de Telles, que, com os olhos a brincarem nas sombras projectadas no tecto pelas franjinhas do abat-jour, concordaria:
- Ó filho, ainda bem que o queres. É o melhor que fazes.
No dia seguinte, pela manhã, silencioso e discreto, reverente e obrigado, Justino Telles, alegando um coração fraco e uma vida de dedicação, saía as portas de bronze pesado que atravessara durante trinta e cinco anos, estugando o passo miudinho até à esquina da Rua do Comércio, onde, finalmente liberto dos pesadelos dos plenários e do sobressalto das reuniões, não resistiu a enfiar melhor o chapéu na cabeça, afirmativamente, ao mesmo tempo que por entre dentes e em surdina gritava:
- Bolchevistas!
A 25 de Abril de 1975, Justino Telles, apesar de instado por alguns amigos e até pressionado por um telefonema de seu filho, que lhe ligara do Brasil, recusou-se a votar. Não entendia nada disso dos votos úteis, não percebia como velhos companheiros de ideais queriam agora que ele votasse nos socialistas. Por isso, naquele dia em que todos gritavam ser o dia das primeiras eleições livres no último meio século da história portuguesa, em colete, de corrente de ouro atravessada sobre o ventre chato e pérola no negro da gravata de seda, Justino Telles decretou:
- Hoje não saímos. Com esta cambada à solta pode acontecer alguma bernarda.
Era o dia 25 do sombrio Novembro de 1975 quando, na salinha de naperões, xailes e Última Ceia de casquinha, Danny Kaye sorriu a Cristina e Justino Telles. Ambos ganharam alma nova. Seria aquele o Dia do Juízo, finalmente se ajustariam as contas em atraso por todos os desmandos, confusões, desacatos que haviam sido cometidos até àquele santo dia no País, por indivíduos que não mereciam ser portugueses, a soldo de inconfessáveis desígnios do estrangeiro.
Foi de mãos dadas e com um sorriso de paz nos rostos que Cristina e Justino, os Telles, se beijaram-até-amanhã e apagaram a luz, protegidos por um recolher obrigatório que impedia os lobos de andarem à solta.
No dia seguinte, no entanto, Justino apagaria o televisor num rompante, proclamando alto e bom som a conclusão filosófica que ainda hoje o norteia e a que chegara naquela data:
- Malandros! Estão todos feitos uns com os outros. Isto foi apenas uma dissidência, não é mais do que uma luta entre bandos rivais. Mas estão todos feitos uns com os outros, ai isso é que estão. Não há dúvida que estão feitos uns com os outros, não senhor! São todos uns bolchevistas!
E até hoje, leitor fiel de um único matutino e atento perscrutador de perspicaz semanário que Justino Telles considera, acertadamente, ambos nascidos na resistência à fúria que o comunismo internacional fizera desabar sobre a sua tranquila existência, aquele pacífico, impoluto e respeitável cidadão se recusou a participar em qualquer acto que tenha que ver com o que uns chamam democracia mas que ele se recusa a classificar de outra forma que não seja «esta grande palhaçada», segundo suas próprias palavras. Palavras suas, mas prudentes, que apenas se arrisca a proferir, bem sonantes, entre as quatro paredes de sua casa, ou a trocar com o barbeiro que há perto de quarenta anos, todas as semanas, lhe faz um caldinho.
Mas a sua vingança máxima é religiosamente cumprida (quando), no televisor, surge a imagem de um qualquer primeiro-ministro, dos muitos que neste país tem havido, e que sempre entendem ter algo de importante a comunicar aos Telles, daquela rua esconsa de bairro social pacato.
Felino, saltando do sofá sobre o televisor e fazendo abater o seu punho, rápido sobre o botão que desliga o aparelho, fulminante e temível, como num golpe de caraté, o velho berra:
- Vai para a Sibéria, bolchevista!
Fica, depois, tranquilo, triunfal como um toureiro à saída dum passe de peito, mas serenando à medida que encontra e decifra o sorriso suave com que sua mulher, Cristina, comemora a vitória e lhe aplaca a ira.
E assim, governo após governo, primeiro-ministro após primeiro-ministro, Justino Telles grita e actua, tonitruante, cortando-lhes, cerce, o pio.
Até hoje, inclusive, nenhum primeiro-ministro lhe escapou.
Lisboa, 1987

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4 Comments:

Blogger R. da Cunha said...

Brilhante! Não pode ser "para ler e deitar fora". Imprescindível em qualquer colectânea que possa vir a ser dada à estampa.

16 de agosto de 2007 às 22:05  
Anonymous Anónimo said...

R. da Cunha,

Esta história faz parte do livro cuja capa se mostra e que, a pouco e pouco, aqui vai sendo re-publicado - regular e quinzenalmente.

Saiu, em 1987, em edições do «Círculo dos Leitores» e de «O Jornal». As tiragens foram grandes, pelo que ainda se encontram exemplares em alfarrabistas (www.alfarrabista.com), p. ex.

16 de agosto de 2007 às 22:35  
Anonymous Anónimo said...

Se ainda fosse vivo, Justino Telles estaria agora radiante; já temos, novamente, um Presidente do Conselho a sério.

16 de agosto de 2007 às 23:09  
Blogger R. da Cunha said...

Agradeço ao Anónimo o reparo, mas bem vi que se tratava de artigo publicado em livro. O que quis dizer é que a sua inclusão numa eventual Selecta (esta faz-me lembrar os meus tempos de estudante liceal de há muitos, muitos anos)a ser publicada sobre o tema, seria imprescindível. De qualquer modo, o meu obrigado e é bem provável que vá procurar o livro do JL.

16 de agosto de 2007 às 23:50  

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