O QUE DIZ E O QUE NÃO DIZ MARCELO
Por Baptista-Bastos
ARISTÓTELES DIZIA que a tragédia, para o ser, tinha de falar de dois sentimentos essenciais ao humano: o horror e a compaixão. Harold Pinter assegura que o teatro, em geral, é a história de uma criança magoada. E ambos ensinam que a vida constitui uma imperfeição desculpável. Aplico estes conceitos ao teatro político português e o resultado é plausível, embora parcial. Os principais actores em cena oscilam entre a preeminência do horror sobre a compaixão e uma prática moral infantilizada. O que os impele a acções socialmente desprezíveis e politicamente reprováveis.
No domingo, Marcelo Rebelo de Sousa, que dorme duas horas e meia, lê tudo, dá aulas, assina pareceres e nada, vigorosamente, aos fins-de-semana, assinalou as semelhanças entre José Sócrates e Marques Mendes. No retrato patusco, o dirigente "socialista" saiu beneficiado. As frases, molhadas em cicuta. Sócrates é melhor do que o outro porque mais desenvolto, tem um físico moldado em ginástica e em corridinhas, é veemente e "determinado", veste melhor, o verbo roça a eloquência. Comum a Mendes, o prazer da política, o gosto inextinguível de poder e a infatigável circunstância de ambos não saberem fazer outra coisa - disse Marcelo.
Tendo em conta os preopinantes da TVI, da SIC e da SIC Notícias, da RTP2 e da RTPN, o professor de Direito é, dizível e visivelmente, o melhor. Inflecte, suavemente, para o disparate, quando repete: "há dois anos atrás", mas sobra-lhe em verve e em ambiguidade o que a todos os outros escasseia em ironia e em risco. Marcelo disse, no domingo, que os dois actores assinalados são iguais no melodrama português. A constituição ideológica de ambos é atávica: procedem do mesmo ninho e da mesma periferia. O primeiro lê; o segundo evita. Mendes traz consigo o odor abafado e antigo dos solares do Minho. Sócrates, lisboeta de afinidade e adopção, o calafrio da frescura matinal serrana. A astúcia dos dois não representa presteza de espírito: fundamenta a manha provinciana de quem almeja conquistar a cidade grande. Fazem lembrar Rastignac, a personagem de Balzac no Père Goriot, quando grita, perante Paris: "Et maintenant, à nous deux!"
A herança é esta, sugere, sibilino, Marcelo: não há solução "alternativa", tendo em conta a ausência de opção. Um apenas veste melhor do que o outro. Eis a clamorosa diferença. O sistema de equilíbrios neutraliza qualquer fenómeno político, que o pretenda alterar substancialmente, reduzindo-o a versões diferentes da mesma atitude fundamental.
Sócrates e Mendes caracterizam dois modos da mesma relação "moderna" com os valores: uma cacofonia por detrás da qual estão a insegurança e a frivolidade.
«DN» de 12 de Setembro de 2007
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