11.10.07

EM DEFESA DO JOGO

Por Pedro Lomba
EU ERA UM ADOLESCENTE, ou nem isso. Costumava passar as férias no campo militar de Santa Margarida em pleno Ribatejo. Era um tempo em que as famílias dos militares se juntavam, numa espécie de rotina burguesa e inconsciente do mundo à sua volta. Um tempo que desapareceu com o declínio do Exército e quando o ténue crescimento das últimas décadas refez as afinidades sociais em torno de quem tem e não tem dinheiro. Nas noites de Verão em Santa Margarida, como não havia computadores nem Internet e o isolamento era considerável, o que podíamos fazer era jogar. Aprendi todos os jogos de cartas, do bridge a essa antiguidade que suponho que já ninguém joga: o crapeau. Aprendi a gostar de bingo, injustamente considerado um jogo de colectividades e febra assada. Aprendi o mundo de diferença que há entre ganhar e perder o que quer que seja. E adorava o poker: mais do que um jogo, o poker envolvia um ritual psicológico, um maquiavelismo lúdico e narcisista a que era difícil resistir. O poker é talvez o único jogo social que é tão interessante para quem joga como para quem assiste. Percebo perfeitamente porque é que vicia.
Estas memórias de infância marcaram a minha relação com o jogo. Hoje já não jogo, mas continuo a achar fascinantes muitos aspectos do jogo, sobretudo essa atitude de reverência do jogador perante a sorte. Não me apanham, por isso, com comentários de alarme e repugnância. Quando se lembra que os portugueses são o maior apostador europeu do Euromilhões (soube-se esta semana que vamos ter um novo jogo do Euromilhões só para nós), há sempre quem fique escandalizado. Como é possível que sejamos tão primários, ao ponto de acreditarmos mais na sorte do que no trabalho e na disciplina? Como é possível gastarmos o dinheiro que gastamos, com absoluta irracionalidade, numa coisa tão aleatória como uma lotaria? E depois vem aquele argumento muito liberal, muito coerente mas também muito insatisfatório: com que direito é que o Estado se serve de lotarias para arrecadar receitas, promovendo o vício e desviando os cidadãos de uma vida de esforço? Ainda por cima é a Santa Casa que gere tudo, o que significa que o Estado tem um monopólio e, no fim de contas, a Santa Casa não devia ser santa?
Tudo, repito, muito certo. Conheço os argumentos. E, no entanto, o meu conselho é: deixem estar o jogo. Batemos recordes de apostas no Euromilhões? E depois? O jogo devia ser livre. Todos os que leram a novela de Dostoievski O Jogador sabem que o jogador é uma personagem metafísica. A personagem principal vicia-se no casino para se aproximar da mulher que ama. O jogo é a sua esperança, a sua via para uma vida diferente. Ganha e perde. E nunca deixa de tentar a sua sorte até que ela finalmente o receba.
«DN» de 11 de Outubro de 2007-[PH]

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6 Comments:

Blogger Unknown said...

Acho que há sempre algo de deliciosamente irresistível no jogo. Mesmo que reconheçamos os seus malefícios enquanto vício, é inegável o fascínio que ele exerce sobre todos nós.

11 de outubro de 2007 às 16:40  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

José ganhou o passatempo «O Jogador».

Pede-se-lhe, pois, que envie a sua morada para sorumbatico@iol.pt

11 de outubro de 2007 às 16:51  
Anonymous Anónimo said...

A SCML NÃO pertence ao Estado NEM à Igreja Católica. É portanto uma empresa que apenas tem, depois de pagar os ordenados do seu pessoal e dos seus gestores, e depois de pagar a publicidade milionária que faz, e depois de pagar o frete ao Governo do patrocínio do rali Dakar, apenas tem, dizia, de aplicar os lucros remanescentes em actividades "misericordiosas".

11 de outubro de 2007 às 23:34  
Blogger pedro oliveira said...

Pedro, quem o ouvir (ler) fica com a ideia que Santa Margarida era assim uma espécie de casino a céu aberto.
Nas colectividades de Santa Margarida jogava-se (joga-se) ainda uma variante plebeia do poker, a lerpa.

12 de outubro de 2007 às 01:08  
Blogger Victor Figueiredo said...

Sabe, Carlos Medina Ribeiro:
adorava ter esse livro de Dostoievsky, tanto mais na colecção da Visão!

Já alguém o reclamou?
:)

Victor Figueiredo (viciado em leituras)

17 de outubro de 2007 às 16:16  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

V.F.

Sim, foi reclamado por "José" e já lhe foi enviado.

Neste momento não temho mais nenhum exemplar. Talvez amanhã ou depois eu arranje.

Escreva-me para sorumbatico@iol.pt a lembrar-me.

17 de outubro de 2007 às 17:24  

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