9.10.07

Mas qual polémica?

Por Rui Tavares
HÁ UMA CERTA LEVIANDADE na forma como as coisas mais banais ganham a dignidade de polémica. Mas não é por acaso: em cada polémica fajuta, há sempre alguém que beneficia. Consideremos o episódio das capelanias hospitalares.
A Constituição, a Concordata e a Lei da Liberdade Religiosa concordam todas nos seguintes princípios:
– A assistência religiosa nos hospitais deve ser solicitada pelo paciente;
– O Estado não é obrigado a pagar a assistência religiosa;
Aparentemente, o Governo dispõe-se a respeitar o primeiro princípio e (como é hábito) esquecer que o segundo existe. E isto é uma polémica?
Para os bispos, dá jeito que seja: o primeiro a declarar uma “polémica” ocupa território. Alegremente vão atrás os jornalistas: nasce a “polémica das capelanias”. Se há polémica certificada, o público convence-se que no meio está a virtude. Logo, quanto mais agravada se mostra uma parte, mais puxa a bissectriz para o seu lado. E já agora porque não chamar-lhe antes uma guerra? Seguem-se manifestos como o de Graça Franco no Público de sexta-feira, acusando os “jacobinos” de perseguir a Igreja e contando as espingardas dos votos católicos: “Querem reintroduzir a questão religiosa em Portugal? Esperem por 2009!”. Se o Primeiro-ministro declara em frente a uma plateia de bispos que “o diálogo é positivo”, a Igreja clama vitória: o Governo recuou.
No espaço de poucos dias, os bispos declararam a guerra, lançaram os morteiros e proclamaram vitória. Com um pormenor: ninguém sabia do que estavam eles a falar.
***
RECAPITULEMOS esta história mal contada. Há um diploma do Ministério da Saúde sobre assistência religiosa nos hospitais. Até há quatro dias, a imprensa não o tinha visto. Só a Conferência Episcopal Portuguesa lhe tivera acesso há meses e (como é habito) em exclusivo. Anunciou o seu escândalo por estas razões principais: não haveria assistência fora do horário das visitas; o governo pretendia despedir os capelães que são funcionários públicos; os amigos e familiares não poderiam pedir assistência depois da entrada do doente. Só há um problema: estas medidas não estão no diploma. Nenhuma delas.
Pelo contrário, o diploma permite a assistência fora das horas das visitas e pedida a qualquer momento por amigos, familiares ou pelo próprio. Os empregos na função pública estão garantidos até à reforma. O estado vai continuar a pagar a assistência religiosa. Quem não tem religião não tem direitos (em contrapartida, exigirei um professor de filosofia ou um lanche reforçado pelos meus impostos). E agora que nós mortais começamos a ter acesso a toda esta timidez em forma de texto, só há duas explicações para a “polémica”: ou os bispos não souberam ler o diploma, ou induziram o público em erro sobre o seu conteúdo.
Por isso, ao invés de ameaçar com a retaliação do voto católico, mais vale fazerem um esforço para evitar as distorções sensacionalistas, guerras anunciadas e vitórias precoces. A “polémica” teve o efeito involuntário de chamar a atenção para isto: mais de cem capelães são pagos nos hospitais com o dinheiro de todos os contribuintes e com acesso irrestrito a todos os doentes, católicos ou não. Para mais, escandalizam-se ao descobrir que a Constituição não lhes dá o privilégio de tratar todo o cidadão como católico à partida.
Agora que já fizeram a festa e lançaram os foguetes, eu teria algum cuidado: as canas ainda não caíram todas.
«Público» de 8 de Outubro de 2007-[PH]

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2 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

«Só há um problema: estas medidas não estão no diploma. Nenhuma delas».

É o velho problema das pessoas que "escrevem muito e lêem pouco" - e lá vamos nós ter, outra vez, à tira de Dibert:

http://sorumbatico.blogspot.com/2007/08/os-elbonianos-da-blogosfera.html

9 de outubro de 2007 às 19:53  
Anonymous Anónimo said...

De facto, esta estória está bastante mal contada, conforme refere o Rui Ramos. Cherchez la femme.

9 de outubro de 2007 às 21:23  

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