28.10.07

NA ROTA DE PUTIN

Por Nuno Brederode Santos
"NÃO VÁ POR AÍ", diz-me o cívico, que produz Régio como o outro fazia prosa. "É só um conselho, porque além, no túnel, já não consegue passar." "Acidente?", perguntei, esquecido da efeméride. "Não, não", disse o guarda, "é que vem aí o russo". (Ocorreu-me logo o fabuloso Alan Arkin, no filme de Jewison, a fazer-se de aldeão americano, gritando "Egemercy, egemercy, the russians are coming", ainda por cima com sotaque de além-Urais). Era, pois, Putin (ou "putine", como escrevem os franceses, carinhosamente empenhados em não dizer "putain") o impedimento no trânsito. Putin, mais o seu blindadíssimo Mercedes "Lang" e um discreto exército de querubins, antropomorficamente ursídeos louros, de fato escuro a exalar o pistolão. Saudades de Rasputine. Comparado, até Sarkhozy (um dopado para a vida que se julga o topo de uma pirâmide humana formada por Vercingetórix, Carlos Magno, Luís XIV, Napoleão e De Gaulle) cirandou entre nós no cinzento anonimato de um burocrata de terceira linha.
Mas, a vir daí mal ao mundo, o mal já lá estava, nesse antiquíssimo Império que confina a Europa e posterga a Ásia. E não veio decerto mal a Portugal. Muitos imigrantes russos se concentraram em Mafra, onde afinal é mais fácil ver Putin do que nas alamedas de Moscovo. E os mafrenses e outros lusos também gostaram, porque levam isso à conta de um folclore que tem laivos de cerimónia dos Óscares.
E, bem vistas as coisas, este nosso improvável amigo até não nos deixou ficar mal. Evitou a emboscada que lhe montara Bruxelas sobre eleições e direitos humanos, depositando na OSCE e num misterioso instituto euro-russo o penhor da sua boa-fé democrática. Presenteou-nos com alguns negócios de primeira água (porque também os há que beneficiam ambas as partes). E ainda se desdobrou em loas ao longínquo Portugal, à nossa presidência e à distensão conseguida. Claro que tudo isto lhe permitiu manter depois, com a União, a dureza que lhe vai a carácter, sobretudo com Bush e com os gémeos polacos: nada que eu lhe leve a mal, portanto.
Assim, mais um capítulo da presidência portuguesa se encerrou em virtude. Forçámos com êxito o estatuto do Brasil, o que sempre seria visto como uma iniciativa portuguesa. Conseguimos o acordo a 27 para o Tratado de Lisboa, que era verdadeiramente a chave do sucesso (entendido este, por definição de eficácia, como conseguir fazer suceder aquilo que se pretendia que sucedesse, e não, por definição de angústia, como a dúvida retrospectiva sobre se aquilo que se desejou foi um bom desejo). Faltam a Índia e a China, que não são "nossos" de raiz. E a cimeira euro-africana, cujos escolhos dificilmente falarão mais alto do que a reafirmação de uma preocupação europeia que um dia possa subir além do esforço das ONGs no terreno. Enfim, em 13 de Dezembro, far-se-á a assinatura do Tratado: o Céu na Terra? Não é.
E não é, porque tudo isto tem custos, que aqui venho assinalando há ano e meio. Custos que fizeram tremer Cavaco em 92 e Guterres em 2000. Um e outro descobriram então que o dia tem 24 horas e que a coordenação de um tal esforço na política externa acarreta sempre sacrifícios na coordenação da política interna. O que, aliás, um e outro desmentiram, até a História lhes tirar razão. É claro que não há maldição que torne isso inexorável. Há remédios: não é ressaca que tenhamos inventado. Ponto é que, por detrás da encenação de banda desenhada, a sugerir que "isto faz-se com uma perna às costas", existam a lucidez e a humildade bastantes para arrancar das próprias tripas uma segunda oportunidade. E merecê-la. Já não com experimentalismos, nem palavras que levam tempo a descer à vida. Mas com as mãos, deitando fora o que não vingou e aprofundando o que afinal até floriu. Devolvendo coerência às políticas sectoriais e dando razões à esperança social. A democracia sempre geriu mal o desespero. Acaba a produzir bolhas de ar para tempos de excepção. E mais facilmente o povo perdoa o que possa não ter resultado até agora do que a sobranceria e a teimosia políticas de persistir em tudo - no bom, mas também no mau - até ao fim.
«DN» de 28 de Outubro de 2007

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