12.10.07

PRÉMIO E CASTIGO

NÃO SOU DE IR A CASAMENTOS, baptizados, funerais ou prémios. No entanto, no outro dia, senti-me na obrigação de ir dar um abraço a um escritor que estimo e respeito porque foi premiado e é meu amigo.
Escrever bem tem riscos. Agora tem mais este: o de ganhar prémios. Sei, por experiência própria, que quando se escreve não se pensa em prémios. E acredito que prémios não se pedem nem se agradecem. Se vêm, tudo bem. A gente guarda-os. O pior é que, para os guardar, é preciso recebê-los. E aí é que está o castigo, porque por detrás de cada prémio há sempre um castigo.
O castigo do prémio é a sua entrega. Se o prémio é pecuniário, ele bem podia chegar pela posta, com o cheque em nome próprio, para não haver falhas nem extravios, permitir registo e solicitar na volta do correio o envio do recibo e do número de contribuinte.
Seria mais próprio. A gente juntava-se com amigos, comíamos em celebração, bebíamos umas garrafas e acabou-se, viva o prémio sem castigo.
Mas se se entendesse que já que alguém ganha um prémio tem que ir a um castigo, ainda que simbólico, poderia enviar-se um ofício para o qual, caso haja interessados, se deixa esta minuta.
«Exmo. Senhor(a), vimos pela presente solicitar a sua presença na sede dos nossos serviços a fim de tomar conhecimento do prémio que foi decidido atribuir-lhe. No caso da sua concordância, que muito apreciaríamos registar, poderá ainda V. no local proceder ao cumprimento das formalidades legais que lhe possibilitará entrar na posse imediata do numerário a que o prémio em epígrafe diz respeito, bem como das respectivas insígnias. Sem mais de momento, aproveitamos o ensejo para apresentar a V. os nossos melhores cumprimentos. Atenciosamente.»
Agora, se se deseja penalizar um criador pelo facto de ter cumprido bem a sua missão de criar, então comunica-se-lhe que ganhou o prémio e que este vai ser entregue em cerimónia pública.
Desejando-se impor o castigo máximo, organiza-se uma sessão solene, de preferência fora da cidade onde se vive, convida-se o Presidente da República, alguns membros do Governo, inclui-se um almoço a seguir à cerimónia e dá-se conhecimento disso aos profissionais de cerimónias deste tipo. Não falha. Serve-se como prato tradicional, acompanhado de suculentos discursos.
Autocarros cheios de conhecedores, pouco conhecidos, muitos familiares e inúmeros desconhecidos convergem para o ponto de encontro que é a cerimónia, o acontecimento.
As forças vivas da terra aguardam que todos estejam presentes, meninas com soquetes de renda branca enfiados em sapatinhos de polimento vão-se descompondo à passagem do tempo, enquanto não chega Sexa, os bombeiros voluntários da guarda de honra transformam-se em acalorados cidadãos uniformemente mal prontos, emissários correm entre os limites do concelho e a sala engalanada a gritarem «vêm já aí», e o premiado, sem ninguém se aproximar, olha espantado tudo aquilo enquanto alguns, mais ladinos, se colocam em locais estratégicos para serem vistos no Telejornal.
«Sexa está atrasada», garante o mestre-de-cerimónias, «mas vem aí», tranquiliza. E o premiado, laureado, ou jubilado, mais se vai sentindo envergonhado, animado pela síndroma do fugitivo e à espera do fiscal das Finanças ou com receio de que o cheque não tenha cobertura.
Nisto de entrega de prémios há sempre um surdo que grita duas oitavas acima do coro: «O que é que eu disse?». E há sempre duas velhas que avançam para os rissóis e dão cabo de várias travessas neste chega-não-chega de antes de começar.
Neste momento, o premiado está quase a chorar. Se os invejosos fossem às entregas, não teriam raivinhas por causa de nenhum prémio. Pelo contrário, batiam os pezinhos de contentes.
Entrementes, já uma menina daquelas que escrevem versos num caderno escolar e tratam toda a gente por tu se enrolou com o crítico que, certo do seu encanto, se interroga por que razão o oftalmologista insiste em dizer que ele é estrábico.
Finalmente chega Sexa, acompanhado de sexas em caixa baixa, como se diz nos jornais, ou que aqui podemos traduzir por letra pequena, como já viram que está a acontecer. E chegam os encómios, os discursos, os apertos de mão, o envelope, o troféu, tudo entregue em duas ou três poses para os fotógrafos, como se fosse um replay de TV em golo bonito do programa desportivo.
Há também o casal discreto que mete na mão de Sexa, ou de qualquer das outras sexas, um papelinho. Não é gorjeta, descansem. Normalmente é pedido. E o professor, ou o Jurista, também não falta para se fazer lembrar a sexas se por acaso lá no ministério...
E, por último, há a salva de palmas e a procissão para a mesa, em U, já ocupada, ou se calhar defendida, pela GNR de farda de gala e pelos motoristas de Sexa e de sexas.
Se o prémio for merecido, faltarão neste ponto da narrativa duas coisas: a primeira é o premiado, que, alegando inadiáveis afazeres, normalmente uma entrevista ou um avião a apanhar, se desculpou e disse que não podia ficar; a segunda são os rissóis e os pastéis de bacalhau que as duas velhas e o surdo exterminaram inexoravelmente.
O prémio, meus amigos, acreditem que vos falo por experiência própria, é um castigo. Um castigo que ninguém merece, por melhor que seja naquilo que faz.
Lisboa, 1987

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