12.10.07

WHAT IS A "DERRAPAGEM"?

Por Carlos Fiolhais

O TERMO PORTUGÊS "ARGUIDO" anda hoje nas bocas do mundo, mas há outros termos nossos que merecerão semelhante sorte por não serem de fácil tradução. É o caso da palavra "derrapagem", que voltou a ser usada esta semana, em que se anunciou a abertura próxima da linha do metro que passa pelo Terreiro do Paço, em Lisboa, e em que se inaugura a Igreja da Santíssima Trindade, em Fátima. Ambas as obras "derraparam"!
Em Portugal é normal que as obras derrapem. Todas derrapam. As grandes obras, então, derrapam muito. E não há nada a fazer, tanto faz ser obra sacra como profana, nem a Virgem nem o Governo conseguem evitar o pior. Se a nova linha do metro não derrapasse (custou 300 milhões de euros, 30 euros por cada português, em vez dos previstos 150 milhões), seria caso para colocar o ministro das Obras Públicas no cavalo de D. José. Se o novo templo de Fátima não derrapasse (custou 80 milhões de euros, em vez dos planeados 40 milhões), isso sim seria um verdadeiro milagre.
No top ten das grandes derrapagens nacionais encontram-se outras grandes obras como a Casa da Música e o Aeroporto Sá Carneiro, no Porto, a Ponte Europa em Coimbra (este recorde da derrapagem foi rebaptizado em ponte Rainha Santa Isabel por quem, não deixando obra, deixou nome de obra), o Centro Cultural de Belém, o túnel do Marquês e o túnel ferroviário do Rossio, todos estes em Lisboa. O total destas derrapagens bem poderia dar para aliviar o nosso enorme défice. Ou, porventura, transformar o défice em lucro.
Eu, que em princípio nada tenho contra os modernos confortos que o TGV e a Ota vão proporcionar, angustio-me ao pensar nas gigantescas derrapagens que haverá nesses empreendimentos. Os custos previstos são de sete mil milhões e de três mil milhões de euros, respectivamente, mas poderão subir para o dobro. Não consigo imaginar esses números, ou melhor, consigo pensá-los tanto quanto consigo pensar no número de grãos de areia na praia da Figueira da Foz ou no número de estrelas na galáxia de Andrómeda.
Por que é que o verbo derrapar se conjuga entre nós mais do que noutros lados? Por várias razões. Primeiro, somos avessos a planos. Depois, quando os fazemos, fazemo-los mal feitos. Depois ainda, mesmo quando os temos bons, somos incapazes de os seguir. Finalmente, porque o "chico-espertismo" (outra palavra intraduzível) serve-se de todas as formas para enriquecer: e tanto é chico-esperto o dono da obra que subavalia o seu custo para a lançar depressa, mesmo sabendo que não tem orçamento para o total, como é chico-esperto o empreiteiro, que faz um lance baixo para ganhar a obra e, uma vez na sua posse, fica tão ligado a ela que não a quer largar de maneira nenhuma. Para não falar no "já agora" (de novo uma expressão lusitana), que serve para ir improvisando à medida que a obra avança.
Deslizamos nos custos e deslizamos nos prazos. A nova igreja de Fátima foi relativamente rápida, mas, mesmo assim, não conseguiu estar pronta a tempo dos 90 anos das aparições. Já a estação de metro do Terreiro do Paço está há mais de dez anos a marcar passo. Quanto ao túnel do Rossio, ainda nem se vê a luz ao fundo. E, quanto ao TGV e à Ota (seja lá onde for a Ota), indicar prazos é tarefa tão difícil como dizer quando é que o aquecimento global vai afogar a praia ou quando é que a próxima supernova vai explodir. "Quando for, logo se vê..." (de novo português de lei).
O que mais me preocupa é a aceitação resignada dos factos consumados pelo Governo e pela justiça. Era ver o ministro das Obras Públicas com um tom tão justificativo que só lhe faltava dizer que estava muito contente com o custo e com o atraso. Não lhe passará pela cabeça que podia ser de outra maneira? Que devia ser doutra maneira? E preocupa-me também a aparente impunidade dos responsáveis (que os deve haver) pelos prejuízos. O Tribunal de Contas não devia ver em tempo útil as contas das grandes obras públicas? Ou será que em Portugal não se fazem contas, mas sim e tão-só faz-de-contas?
«Público» de 12 de Outubro de 2007-[PH]

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3 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Com o túnel da Praça do Comércio passou-se uma coisa curiosa:

Li, em vários jornais, a notícia, incluindo o seu custo e a escandalosa "derrapagem".

Mas só num deles (por sinal um "gratuito") é que li o mais importante:

O Tribunal de Contas analisou a derrapagem e, apoiado num parecer do LNEC, afirmou que os problemas eram perfeitamente previsíveis, pelo que não se tratou de "acidente" mas sim de "incúria".

Nesta história, como é habitual, falta o "e depois?".

12 de outubro de 2007 às 14:11  
Anonymous Anónimo said...

O mais trite é mesmo a impunidade nao ser aparente. Optimo blog este.

12 de outubro de 2007 às 14:54  
Blogger bananoide said...

Proponho uma nova definição para a palavra, a incluir num futuro "Dicionário Interactivo de Expressões Exclusivamente Portuguesas" (uma espécie de Wikipedia, mas em papel, em que o leitor pode colaborar):

Derrapagem: substantivo feminino
do Francês dérapage

acto de derrapar

Sinónimos: descambar, falta de rigor financeiro, meter ao bolso, compadrio, normalidade.

Ver também:
Obras de Santa Engrácia
Casa da Música
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(Acrescentar aqui as suas preferidas, de norte a sul do país)

12 de outubro de 2007 às 16:08  

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