3.11.07

AJUDA À RÚSSIA

Por Carlos Fiolhais

ABRIU (...), com pompa e circunstância, no Palácio da Ajuda, uma exposição sobre os czares russos: “De Pedro, o Grande, a Nicolau II - Arte e Cultura do Império Russo nas Colecções do Hermitage”. A mostra insere-se num conjunto de três que visam a instalação em Lisboa de um pólo permanente do Museu Hermitage, de São Petersburgo, a cidade fundada em 1703 por Pedro, o Grande.
São bem conhecidas as dificuldades por que os russos passaram quando se tornaram “novos pobres”, dificuldades bem patentes nos seus museus, mas agora com a alta do petróleo estão bem melhor. Poderia pensar-se que a Federação Russa nos está a ajudar, enriquecendo-nos culturalmente ao facultar os seus excelentes tesouros. De facto, é ao contrário: é Lisboa que, armada em “nova rica”, ajuda Moscovo. A exposição, que custou 1,5 milhões de euros, é paga integralmente por nós, quer com dinheiros públicos através do Ministério da Cultura e do Turismo de Portugal quer com dinheiros privados através do Millennium BCP (é com o dinheiro dos clientes, que também foi dado ao filho do fundador) e da Portugal Telecom. Assim como vão ser pagas integralmente por nós as próximas exposições e, provavelmente, a sucursal lisboeta do Hermitage. Eu não sei se somos suficientemente ricos para pagar tudo isso. A Inglaterra, que é mais rica do que nós, acaba de anunciar, por falta de dinheiro, o fecho do pólo do Hermitage em Londres. A questão que se coloca é legítima: mesmo dando de barato que dispomos de meios abundantes (algo que levanta muitas dúvidas a utentes de hospitais, reformados, alunos e professores), o retorno proporcionado pela contemplação dos luxos dos czares justificará o enorme investimento?
A minha resposta é clara: não. Por uma razão muito simples. Temos excelentes tesouros descurados aos quais devíamos atender em primeira prioridade. Por exemplo, no tempo de Pedro, o Grande, o rei D. João V mandou construir a Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra e o Palácio de Mafra, também contendo uma esplêndida biblioteca. O Estado português, se quisesse valorizar o nosso património cultural e levá-lo não só a todo o país como à Rússia e a outras partes do mundo, empreenderia um grande programa de conservação e digitalização dos fundos históricos das bibliotecas nacionais, com especial atenção para os nossos autores. Boa parte dos nossos livros antigos estão em estado lastimoso, roídos pela usura do tempo, e precisam de mãos carinhosas que os amparem. A digitalização é a moderna forma não só de levar a nossas casas os conteúdos do património escrito como também de preservar os originais. Os países mais avançados, como a Rússia, estão a avançar por aí.
E podia falar longamente das intervenções que urgem no nosso património físico. A porta da Biblioteca Joanina está em mau estado e boa parte do edifício não pode ser mostrada ao público. Tal como a Joanina, o Palácio de Mafra (que fecha às 17h) não tem condições para ser visitado por deficientes, para além de grande parte do seu espaço estar entregue aos militares. Há monumentos ao abandono: Em Agosto fui ao Santuário do Cabo Espichel e está uma ruína que mete dó. Podia também falar da gritante falta de meios dos nossos museus. No último domingo tive de sair do Museu Grão Vasco porque fechava à hora de almoço. E deixei de ir ao Museu Nacional da Ciência e da Técnica porque foi encerrado. Nem vou a Vila Nova de Foz Coa porque sei que não está lá o tão prometido museu. E podia ainda dizer que havia outras exposições para importar e que importam mais, como as de Washington e Berlim sobre os Descobrimentos.
«Quando os russos virem a exposição vão ficar muito satisfeitos com o carácter verdadeiramente espampanante que ela vai ter», disse ao «Expresso» Fernando Baptista Pereira, o comissário local. Eu irei ver, até porque estou curioso por saber como é mostrada a presença lusa na corte dos czares (Ribeiro Sanches foi médico de Catarina II em São Petersburgo), mas não sei se vou ficar satisfeito. Espampanante? O novo riquismo sempre foi saloio.
«Público» de 25 de Outubro de 2007-c.a.a.

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Curiosa coincidência:

Depois de um post intitulado «Ajudar não é para todos», um - com o título «Ajuda à Rússia».

Por sua vez, este comporta ainda o trocadilho entre "ajuda" (de "ajudar") e "Ajuda" (palácio da).

3 de novembro de 2007 às 11:56  
Blogger homoclinica said...

Eu fui ao Palácio de Mafra numa visita guiada e só vi a biblioteca a partir da porta. Que livros lá estão? Alguém sabe? Alguém os pode consultar?
Noutra altura fui, também numa visita guiada, ver o Arquivo da Marinha, na Cordoaria (http://arquivomarinha.blogspot.com/). Fiquei simultaneamente maravilhada com a riqueza daquele arquivo e chocada com a fragilidade com que está guardado. Relatos manuscritos de viagens, aguarelas originais feitas por alguns oficiais, o relato da fuga da família real portuguesa no dia da implantação da República, a ficha pessoal de Gago Coutinho e tantas coisas mais, originais, autênticas ali na minha mão.
Estes arquivos simplesmente embrulhadas em papel pardo, atadas com um cordel e espalhados por várias salas sem o mínimo de condições. A conservadora, inexcedível em dedicação e entusiasmo não tem direito a ar condicionado. O único que existe é para os arquivos.
Se acontece um incêndio, ou outra desgraça?
Porque não se digitaliza tudo e se guardam convenientemente todas aquelas preciosidades?

3 de novembro de 2007 às 23:25  
Anonymous Anónimo said...

Caro Carlos,
Desta feita estou inteiramente de acordo consigo. É, aliás, um assunto que me toca muito profunda e directamente - a conservação do património. Para além de todo aquele que está abandonado, neglicenciado ou arruinado, muito do restante é mal "gerido" por curiosos e impreparados, ficando os especialistas (entre os quais humildemente me conto) arredados da acção sobre o mesmo. Pois no nosso país, como deve saber, os lugares de chefia, direcção ou administração dos bens públicos não são acessíveis aos competentes, mas sim aos "camaradas", familiares e "amigos". E depois, os governantes deste paraíso do oportunismo ainda têm o desplante de vir falar em excelência! São uns filhos da... pátria.

4 de novembro de 2007 às 16:02  

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