4.11.07

CHEQUE E PAVOR

Por Nuno Brederode Santos
PARA QUATRO DIAS DE FIM-DE-SEMANA, Lisboa esvaiu-se à minha volta. Fez-se paisagem. E eu dou comigo a aproveitar a circunstância para fazer frente à falta de imaginação que me assalta para as grandes causas cívicas e fazer o ponto de algumas que, por mais pequenas, o bom-senso resguarda e o pudor cala. Valha isto por uma página do "diário" que não escrevo, talvez porque a bênção de uma razoável tranquilidade quotidiana paga o preço da falta de tragédia ou epopeia à minha volta. Mas nem por isso deixam de pesar nas horas e minutos de um dia que passa, sobretudo quando nada mais se passa nele.
Recebi, pelo correio, os cheques que encomendei. Pedi dois conjuntos de vinte cheques e recebi dois livros de argolas, com trinta cheques cada um. O banco já me explicou que agora é só assim. É claro que ninguém me avisou, mas isso é normal (ou como tal se tornou há muitos anos, provavelmente enquanto eu estava de costas). E como fico muito grato por os cheques não virem cruzados, como também já me sucedeu por "agora ser assim", eu recebo e aceito vinte cheques a mais com exemplar bonomia, quase gratidão. Acontece que, a capear o primeiro dos dois livros, vem a "nota de débito nº", onde me informam que a conta foi debitada pelo valor de 62,41 euros, sendo 56,74 de "comissão". Há aqui uma desarmante franqueza, porque - talvez isso o banco saiba - "comissão" vem do verbo "cometer". Há dois anos, um poderoso gestor bancário dizia-me: "Convém evitar os cheques, pois já custam cerca de cento e trinta escudos cada" (a referência em escudos foi uma terna atenção que ele quis ter para a minha terceira idade). Não sabendo como "evitar", mais do que evito, os ditos cheques, virei costas ao problema. Durante dois anos, ao que julgo. Agora descubro que, com impostos (5,27 euros) e portes (0,40 euros), já eles custam mais de um euro cada um. E eu que os posso pagar, ou, pelo menos, sobrevivo à resignação de o fazer, olho para trás, a ver se vejo quantos estarão aquém desse limiar. Quantos discutem, com toda a razão do mundo, o aumento do café, que lhes custa cinco ou dez cêntimos por dia, sem que sequer lhes ocorra questionar o que pagam ao banco. Que é coisa que vem de cima. De um Deus longínquo ou de uma fatalidade próxima.
Tudo, nos dias de hoje, obriga o mais desfavorecido dos cidadãos a ter conta bancária: o Estado, o patrão, o fornecedor, o cliente. E mesmo o cidadão que prefere as virtualidades da palha do colchão onde dorme, para nela guardar o seu dinheiro, é na conta bancária que o recebe e é dela que terá de o levantar. Não era mais do que razoável que um número básico, mensal, de operações elementares - as indispensáveis à vida corrente de quem, por exemplo, mais não faz do que um levantamento por semana - estivessem isentas de custos. Ou que, pelo menos, um banco público a tal fosse obrigado (desde que o cidadão o pudesse livremente impor, designadamente ao seu patrão). Mas o razoável já releva da utopia e o cansaço murchou muitas das rosas do que a nossa condição é, ou deve ser. O que aqui recomenda um regresso ao mundo tangível. O das desgraças da carne e das venturas do sonho. O das vidas adiadas para uma ressurreição que não há.
São essas as vidas que terão feito zapping quando os protagonistas da novela do hipotético Millenium-BPI se entretiveram, noite dentro, a discutir os seus problemas empresariais no recato de um ecrã iluminado para milhões. Felizmente para aquelas e felizmente para eles. Por muito miserabilismo que engalinhe a pele dos demagogos contra a banca, a verdade é que só uma grande falta de senso pode levar a arriscar a "transparência" que os senhores da banca exibiram. A "transparência" de um mundo que banaliza os milhares de milhões, que os afastam do mundo dos outros, para depois naufragar, mais e pior do que estes, em leviandades, nepotismos, compadrios e mentiras contabilísticas. Que raio!, o merceeiro do meu bairro talvez faça isso tudo, mas não o discute com um cliente quando tem a loja cheia.
«DN» de 4 de Novembro de 2007

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2 Comments:

Blogger bananoide said...

A forma como os bancos escandalosamente "subtraem" quantias exorbitantes aos seus clientes é apenas a ponta de iceberg capaz de afundar 10 Titanics.

A nossa apatia perante este e outros factos relativos à vida comum dá-nos todos os dias o rótulo de "país de brandos costumes". E por isso, a impunidade reina e continuará a reinar.

Relativamente aos cheques, como agora até têm validade, é natural que se aumente o nº de cheques em cada livro: assim dão-nos mais cheques dos que os que podemos gastar até ao fim do prazo mas claro que todos nos são alegremente debitados. Mais uma forma encapotada de aumentar os pequenos lucros dos bancos.

4 de novembro de 2007 às 14:51  
Blogger António Viriato said...

Saúdo, finalmente, um texto de NBS que não versa matéria anti-PSD ou anti-Cavaquismo e com o qual muitos certamente hão-de concordar, tão prepotente e prevaricadora a Banca tem anadado.

Não desesperemos, portanto. Pode NBS estar a entrar no bom caminho. Nunca é tarde..

5 de novembro de 2007 às 00:10  

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