14.11.07

Uma história infeliz

Por António Barreto
HÁ HISTÓRIAS TRISTES que acabam bem. Esta é triste e, apesar de não parecer, acaba mal. Uma senhora é funcionária pública. Trabalha numa Junta de Freguesia. Algures em Portugal. Foi-lhe diagnosticada doença grave. Sofria de dores violentas nas costas, nas pernas, no corpo todo. Teve baixas sucessivas. Voltava a trabalhar quando podia, mas podia cada vez menos. Os médicos mantinham: estava doente, necessitava de baixas. Ela pediu a reforma. Uma junta médica considerou que estava apta para trabalhar. Ou mais ou menos. A legislação era (é) confusa. Apesar de todas as evidências, a senhora estava obrigada a ir trabalhar. E foi. Empanada, com bengalas e ajudas, apoiada e com coletes e colares para a manter mais ou menos direita. Conseguiu, não sei como, visibilidade nos jornais, nas televisões e nas rádios. A imprensa apiedou-se. A comunicação denunciou. As televisões puderam mesmo mostrar, em pormenor, partes do corpo, ligaduras e outros pormenores. Era tudo tão evidente! Os deputados da oposição protestaram. As televisões insistiram. Até que o Ministro das Finanças decidiu tomar conta do caso. Revogou as decisões das Administração regional, da Segurança Social e da Junta Médica. Apareceu na televisão a considerar que o caso estava resolvido, tinha tomado providências. A senhora foi para casa.
Está tudo errado. A legislação sobre invalidez. As regras que presidem ao trabalho das juntas médicas. A surdez da Administração Regional da Segurança Social e mesmo da direcção nacional da Segurança Social. A actuação dos médicos. A atitude da Junta de Freguesia. E também, para acabar, o comportamento do ministro. Um ministro não decide só quando é sensibilizado pela televisão. Um ministro não revoga decisões das administrações e dos médicos. Um ministro não toma decisões individuais. Um ministro não vai à televisão comunicar decisões individuais e emocionais. Um ministro não usa de demagogia para cuidar do sofrimento dos cidadãos. As televisões não abusam da intimidade das pessoas, não exibem corpos doentes, nem exploram a dor. A única coisa que correu bem é que, agora, a senhora está em casa. Apesar do sofrimento, está em paz.
As conclusões a retirar são simples. A Administração Pública, nomeadamente os serviços sociais, não servem. Se alguém, vítima de injustiça, de atrasos, de burocracia ou de despotismo, se quer queixar com eficácia, não deve perder tempo com os trâmites oficiais nem os procedimentos habituais. Deve imediatamente ir falar à televisão, encenar sofrimento e indignação, comover a opinião pública. A isso, os ministros não resistem. Prevejo que este ministro vai receber milhares de cartas. E que as televisões, que adoram o sofrimento, não vão ter mãos a medir.
Blogue «SORUMBÁTICO» - 14 de Novembro de 2007

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11 Comments:

Blogger Pedro Tomás said...

É importante reflectir sobre porque é que os organismos competentes só actuam quando as situações são denunciadas na praça pública. Essa inércia, quase a roçar a incúria, tem que ser analisada e combatida.

Este texto é um enorme contributo para que isso aconteça. Além disso, está escrito de forma excelente, como aliás é algo habitual neste blogue.

Um abraço

14 de novembro de 2007 às 12:52  
Anonymous Anónimo said...

Concordo que é lastimavel o facto de a senhora ter-se exposto da forma que se expôs, para que dessem a devida atenção ao seu caso.
Realmente assim não dá para acreditar que Portugal ande para a frente.

14 de novembro de 2007 às 15:59  
Blogger R. da Cunha said...

Não sei quem mais é merecedor de críticas neste caso, se as TVs, com todas as imagens que colheu e difundiu despoduradamente, com a conivência da Junta de Freguesia, se o ministro, ao decidir casuisticamente, tarde a más horas, pois casos como este vêm-se repetindo na praça pública desde há meses.
Foi publicado há dias o DL que altera a composição e os procedimentos das juntas médicas da CGA, mas só entrará em vigor quando forem publicadas as portarias regulamentadoras. E quando o serão? E até lá?
Tudo isto é triste...

14 de novembro de 2007 às 17:55  
Anonymous Anónimo said...

Caro António Barreto:
O que você escreve aqui é horrível, mas é verdade. E eu queria tanto que fosse mentira...

14 de novembro de 2007 às 18:21  
Anonymous Anónimo said...

Nutro tão alto grau de estima e respeito intelectual pelo António Barreto, que me obrigo a vir dizer: dele, espero mais.

Ele veio expor factos consabidos, públicos e notórios. Da sua imensa e habitual sageza espera-se que nos dê opinião sobre os porquês. Os porquês, sobretudo, desse plasma difuso que abocanha e governa as agendas mediáticas, às quais se subordina a vida nacional -toda a vida nacional, política e desportiva, cultural e social. Porquê, meu caríssimo António Barreto? Quem não aparece na TV, não existe. Nem consegue a devida reforma, nem fura a vida, nem agarra sol. Mas por que é assim? Por que há-de ser assim? O sociólogo parece resignar-se, no final do seu belíssimo texto. Isso não nos basta, António Barreto. De si, da sua estatura cívica e científica, exijo mais. Fale-nos dos porquês.

14 de novembro de 2007 às 20:22  
Anonymous Anónimo said...

Pedro Rangel,

Uma crónica não é um ensaio. Escrita para um blogue, tem limitações adicionais, quanto mais não seja de espaço. O que haveria para dizer encheria um livro (ou vários!); mas quem o(s) leria, se afixados aqui?

Um cronista escolhe um caso paradigmático (se possível actual e conhecido), dá a sua opinião no (pouco) espaço de que dispõe, levanta questões, deixa pistas... e deixa muito ao cuidado dos leitores.

Ao colocar aqui o texto (aberto a comentários - o que não sucederia num jornal), o autor está, precisamente, a apelar aos leitores que, de certa forma, o "completem".

Mas tudo isto sou eu a pensar, pois não tenho qualquer procuração de A.B., que, aliás, não conheço pessoalmente.

14 de novembro de 2007 às 21:02  
Blogger R. da Cunha said...

Já tentei corrigir o erro, mas por qualquer razão tal correcção não foi publicada, pelo que a repito.
Escrevi no meu comentário "despoduradamente", quando queria escrever "despudoradamente", como é óbvio.

14 de novembro de 2007 às 23:13  
Anonymous Anónimo said...

Vejamos..não vejo qual é o espanto ! Os trabalhadores não devem ser usados até ao máximo das suas capacidades? Quer dizer... flexibilizar as suas competências ? A senhora quase não mexe do pescoço para baixo mas: tem a cabecinha a funcionar bem , a audição deve estar razoável, fala que eu bem a ouvi falar. Então não pode ser a telefonista lá da Junta? Ou dar informações aos utentes ? A mim parece-me é que ela é como toda a cambada dos trabalhadores uma grande preguiçosa! Maria Socretina, adepta do governo

15 de novembro de 2007 às 14:42  
Anonymous Anónimo said...

Maria Sócretina, fã dos socretinos, é quem assina o último comentário

17 de novembro de 2007 às 12:55  
Blogger Pedro Tomás said...

Este comentário foi removido pelo autor.

18 de novembro de 2007 às 14:23  
Blogger Pedro Tomás said...

E se um dia lhe acontecesse a si?

Eles nunca pensaram que lhes pudesse acontecer a eles. Mas aconteceu.

Ela, desde que nascera, em 1956, tinha sonhado com a investigação e a docência. Queria dar a conhecer a toda a gente o que a fascinava: os mistérios da sociedade, os padrões das relações sociais. Estudou, por isso, com afinco. Licenciou-se e mais tarde doutorou-se em Sociologia.

Apesar de ter uma grande apetência para a docência, acabou por seguir sobretudo o caminho da investigação. O seu percurso profissional tinha-a levado longe, mas desde há dois anos que tentava, em vão, lutar contra aquela estúpida doença, aquela sentença de morte sem data marcada. Os músculos enfraquecidos, os espasmos, a descoordenação motora e a falta de equlíbrio eram coisas que ela a custo conseguia tolerar. O pior mesmo, aquilo que a deixava completamente impotente e à mercê da doença, era a dor, os problemas na fala, as disfunções cognitivas e os outros sintomas neurológicos. A esclerose múltipla tinha-se apoderado dela e não havia fuga possível.

Com ele o caso era outro, mas igualmente doloroso. Tinha-se licenciado em Economia em 1973 e depois, em 1985, tinha concluído o PhD nos EUA. O seu percurso, apesar de pouco visível até 2005, tinha sido brilhante. Os prémios ganhos, quer em Portugal quer no estrangeiro, eram precisamente a prova disso.

Mas o que interessavam esses prémios e a carreira brilhante quando agora se via novamente a braços com aquilo? Tinha-lhe sido diagnosticada há quatro anos, aquela maldita leucemia! Mas tinha-a vencido! Pelo menos era o que ele pensava. Ela estava agora de volta, para o atormentar: a fraqueza, a fadiga, as gengivas sempre a sangrar, as insistentes dores nos ossos, nas articulações. A confusão mental e os enjoos que o impediam de fazer o que quer que fosse. Desta vez era diferente. Sentia que os sintomas eram mais fortes e já tinham passado quatro anos. Estava mais debilitado e, sinceramente, faltava-lhe o ímpeto de outros tempos para lutar contra a doença, se é que isso era possível. Sentia-se derrotado. Só queria repouso, minizar o seu sofrimento.

Mas isso não era possível. Ambos já tinham tentado, em vão, a aposentação por incapacidade, uma e outra vez. Recusado! O sistema vigente não o concedia. A frieza das juntas médicas, mas sobretudo, dos números do restritivo orçamento, não o permitiam. Tinham que continuar a trabalhar, terminada a baixa. Sentiam-se incapazes... Esperavam apenas que a solidariedade dos colegas os pudessem ajudar, minimizando o seu sofrimento, porque essa era, invariavelmente, a única solução.

Como eles queriam voltar atrás! De uma forma algo masoquista, preferiam até ter sentido na pele, quinze anos antes, esta realidade que agora os atormentava. Agora já era tarde demais para, com o seu poder, minimizarem o seu sofrimento e o de tantos outros.

O ano era 2022, mas como queriam voltar a 2007... O ano em que, sendo ministros, ele das finanças, ela da educação, ainda detinham o poder para mudar as coisas.

Mas agora era tarde. Esse poder já lhes tinha fugido das mãos. Tinha sido, democraticamente, entregue a outros. Estavam agora à mercê de alguém que, preocupado com a frieza dos números, só lhes agravava o sofrimento.

18 de novembro de 2007 às 14:31  

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