Entra, Irene!
Por Nuno Brederode Santos
AO CAIR DA TARDE, o Gaspar vinha ensombrar-me a existência. Grande e obeso, esgueirava-se pelos muros, no passo premeditado e inaudível dos felinos. Trazia a surpreendente agilidade do crocodilo na corrida curta. E a massa muscular, oculta entre pregas e refegos, de um lutador de sumo. Depois, estacava no muro do meu quintal e fixava os olhos, muito abertos, nas janelas da casa. Vista de frente, a cabeçorra de Garfield inchado escondia-lhe o corpo todo e eu julgava estar ali o Gato de Chester, do Lewis Carroll, numa reencarnação mais inquietante. Vinha aos melros, o velhaco. E averbou, pelo menos, um sucesso. Descobri-o, aliás, com o mérito costumeiro nestas investigações: por um lado, porque ele abandonou o cadáver da vítima; por outro, porque a dona, que é dada a tropeços de alma, bufou as suas próprias suspeitas. Creio que também culpando-se pelos mimos que lhe dá, enquanto afadiga os olhos em livros e fotocópias.
Após o lamentável incidente, o Gaspar deixou de aparecer e a minha qualidade de vida disparou para o patamar de um sueco ao sol meridional. Suspeito que a Irene se levantou da ternura e ralhou com ele. Ou então ameaçou-o, porque ele tem pinta de poltrão. Fosse o que fosse, resultou.
O que posso dizer é que, sem a sombra do gato Gaspar, a vizinhança da Irene (Flunser Pimentel) é um encanto de sempre e de todos os dias. Na minha casa, é só bater à porta, que eu digo: "Entra, Irene. Você não precisa pedir licença" (mesmo que ela persista em me recusar o gosto de pedir primeiro: "Licença, meu branco"). Mas a Irene não demora, porque tem sempre muito trabalho ("atrasado", diz ela). E lá volta, frenética, para os seus lamentáveis convívios, que invariavelmente recruta entre os fantasmas de Pides, de nazis dos anos trinta e quarenta e de outra gente de mau porte (e pior sorte). O que seria maior pena, não fosse a serena certeza de amanhã haver café da manhã, ou almoço no restaurante vizinho, ou uns dedos de conversa na mesa 2 do Procópio.
Talvez não seja incontroverso que uma rua tão pequena tenha direito a um Prémio Pessoa: por critérios puritanamente democráticos, a magra Rua dos Sapateiros deveria então contar com, pelo menos, três prémios Nobel. Mas isso fica ao remorso do Francisco Balsemão e do seu júri. E a democracia de que eu gosto, de puritana, nada tem. O que importa é que, doravante, qualquer abaixo-assinado entregue na Câmara de Lisboa para que tapem, na nossa rua, dois buracos, deverá ser atendida com muito maior prontidão (sem sequer termos de invocar o vizinho, sempre ausente, que agora preside à Comissão Europeia).
Mas, tratadas estas minudências que o pragmatismo impõe, fica a mansa alegria deste prémio.
Desde logo, porque a Irene é a antivedeta por excelência. E o under-acting não é capricho de uma escola de representação - que nos deu o Jimmy Stewart, o James Mason ou a Delphine Seyrig -, mas uma estética para a vida quotidiana. Uma estética de resistentes, alternativa à dos iluminados. Uma estética dos libertadores de si mesmos, alternativa à dos conquistadores dos outros. Uma estética do exemplo que não buscou testemunhas, alternativa à dos que querem render e empurrar as multidões. E é isto que a Irene tem, embora eu duvide que o saiba: porque brota nela, como lava, ao natural e a carácter.
É claro que tudo isto pressupõe e requer uma vontade de ferro a alavancar uma imensa capacidade de trabalho e uma ética do dever de sacrifício. Não sei se tenho essa vontade, sei que não tenho nenhum dos outros requisitos. Tenho outros quereres, outros deleites. Outra ideia - porventura menos generosa - do deve e haver para com os outros, do nascer até morrer. Por isso, não invejo aqueles. Mas respeito-os sempre. E, às vezes, admiro-os. A gente gosta do que faz sentido, mesmo - senão sobretudo - quando não faz o nosso sentido.
Enfim, no seu trabalho solitário, a Irene tem o desassombro de que só os tímidos são capazes. E, para sorte minha e dos meus coetâneos, põe-no ao serviço do que em nós ainda é memória.
Em suma, Irene, fiquei contente. Espero que também por ti, mas certamente por mim. Até fui comprar orquídeas, vê lá tu. E não são para ti, são para mim.
«DN» de 16 de Dezembro de 2007
Etiquetas: NBS
1 Comments:
Acerca do Prémio Pessoa atribuído a Irene Pimentel, ver, p. ex.:
http://sic.sapo.pt/online/noticias/vida/20071114+Premio+pessoa.htm
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