14.12.07

Pat Boone na Castelhana

Por Joaquim Letria
APONTARAM-ME O PROTAGONISTA. Estava encostado a um gradeamento e olhava desinteressado o passeio feérico dos travestis na avenida de Madrid, por onde eu caminhava com amigos, entre os quais haveria um que era conhecedor da história que me proponho escrever-vos, actualizando um pouco o mister do orelheiro, que escuta e reconta as histórias que andam por aí.
Fá-lo-ei, no entanto, com inteiro respeito pelos personagens e com todas as reservas pelas fontes, pelo que não deverão esperar quaisquer revelações sensacionais nem levianas; tão-pouco exporei ao esperado ridículo aqueles que assumem com bravura a sua diferença da maioria. Mas a história, essa, acho-a tão bela que, mesmo correndo o risco de não ser totalmente verdadeira, não resisto a contá-la. E agora, em pleno acto da escrita, eu próprio quedo na dúvida se não a terei inventado do princípio ao fim, buscando em figuras reais a veracidade necessária a que me acreditem.
Dizia eu que me apontaram o protagonista. E que ele olhava desinteressado os travestis que se coqueteavam por uma bela avenida de Madrid. Mas embora desinteressado, a verdade é que se posicionava num ponto onde não podia deixar de fazer parte do cenário da peça cujos intérpretes eram os travestis.
Confesso, igualmente, que estes últimos foram também o motivo da passagem por aquele ponto de Madrid. Curiosamente, acho que os homens têm algum fascínio por eles. Eu tenho, confesso, apesar de não ter travado conhecimento mais íntimo com nenhum para além daquele que vai da distância da fala. Mas, sem saber bem como me explicar, e correndo riscos de ser mal interpretado, acho que é difícil encontrar muitas mulheres tão femininas como um travesti. Por isso cedi à sugestão desses amigos, portugueses, residentes em Madrid: «Vamos à Castellana ver os travestis.»
A juntar à sua inegável feminilidade, os travestis têm aquela maldadezinha interior de que só os homossexuais são portadores e com a qual caricaturam cruelmente as mulheres no que estas podem exteriorizar de mais desprezível, o que tem sido muito apreciado em espectáculos de cabaré, dos quais não sou, infelizmente, frequentador. A tudo isto acresce que os amigos que me propuseram desportivamente esta espécie de safari me acicataram a curiosidade com a sentença: «São quase todos portugueses»
E eu não resisti à dose de nacionalismo de ver belos exemplares do macho lusitano a desfilar em salto alto e a piscar o olho aos Pacos como, nos meus bons velhos tempos as Lolas nos excitavam nos cabarés de Lisboa e do Porto. E mais, confesso que, ao vê-los, me senti orgulhoso: ora digam lá se há na Europa travesti que pise com mais garbo do que o travesti lusitano?!
Mas o protagonista não se movia. Teria talvez cinquenta e cinco ou sessenta anos, vestia classicamente, quero dizer fato completo e gravata, e fumando, absorto, não se movia.
Mas, afinal, o que mais chamava a atenção era que os travestis não o tomavam por alvo, não o convidavam provocadoramente como faziam com todos os outros transeuntes, em especial os que estavam motorizados. Parecia, assim, o protagonista desta minha história, na sua imobilidade, o mestre-de-cerimónias, ou se preferirem o ringmaster, daquele circo de travestis amestrados.
E foi então que ouvi - ou imaginei? - a história. O meu protagonista era notário forçado, porque a família a isso o obrigava, casado e pai de filhos, e estava ali porque se tomara de amores por um jovem travesti, ao qual, aliás nada de carnal o ligava, pois ele nem bissexual era, tudo se passando, portanto, no plano platónico.
Só que o efebo, cuja diferença de uma mulher é só a daquele pormenor que todos conhecem, porque em tudo o mais é uma mulher perfeita, é exactamente igual a uma menina que fora brutalmente afastada dos sonhos de adolescente do meu protagonista.
Daí, todas as noites, o meu protagonista jazer imóvel entre as idas e vindas da figurinha loira, delicada, de biscuit que, de táxi ou em grande turismo anda a edulcorar a virilidade do macho peninsular.
E nos intervalos encontram-se e falam, trocam presentes e dão as mãos e falam do Pat Boone e do Billy Halliday, que eram os temas favoritos do meu protagonista e da sua bem-amada, naquele amor proibido de trinta anos atrás antes de a família transformar um rapazinho sonhador e apaixonado num triste tabelião, cuja única alegria é a de hoje, às escondidas, a coberto da noite, ter a inocente aberração de namorar, como os adolescentes da sua juventude, com um travesti que é igual à namorada que foi forçado a abandonar, e com quem fala de Pat Boone e de outros temas que os jovens de há trinta anos tinham para conversar quando namoravam em festas, no cinema ou quando se esperavam às portas dos liceus ou à saída da missa.
Lisboa, 1987

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