27.1.08

A arte de mentir

Por António Barreto
TÊM VÁRIAS DESIGNAÇÕES. Assessores. Conselheiros. Encarregados de relações com a imprensa. Agentes de comunicação. Ou, depois do choque tecnológico, Press officers e Media consultants. Sem falar nos conselheiros de imagem. Povoam os gabinetes dos ministros, dos secretários de Estado, dos directores gerais, dos presidentes e dos gestores. Vivem agarrados aos telemóveis, aos BlackBerries, às Palms e aos computadores. Falam todos os dias com os administradores, directores e jornalistas das televisões, das rádios e dos jornais. Dão, escolhem, programam e escondem notícias. Mostram aos políticos e aos gestores o que é do interesse deles. Planificam a informação. Calculam os efeitos e contam as referências feitas na imprensa. Tratam da imagem, compram camisas para os seus mestres, estudam-lhe as gravatas, preparam momentos espontâneos, formulam desabafos, encenam incidentes e organizam acasos. Revelam a intimidade que se pode ou deve revelar. Calculam os efeitos negativos de uma decisão sobre os impostos, que articulam com as consequências positivas de um aumento de pensões. A fim de contrabalançar, colocam o anúncio de Alcochete logo a seguir ao do referendo europeu. Fazem uma planificação minuciosa das inaugurações. Escrevem notícias com todos os requisitos profissionais, de modo a facilitar a vida aos jornalistas. Mentem de vez em quando. Exageram quase sempre. Organizam fugas de imprensa quando convém. Protestam contra as fugas de imprensa quando fica bem. Recompensam, com informação, os que se conformam. Castigam, com silêncio, os que prevaricaram. São as fontes. Que inundam ou secam.
OS JORNAIS PARECEM-SE UNS COM OS OUTROS. As notícias são quase iguais. As agendas das redacções são gémeas. Salva-se, desta uniformidade, aqui e ali, quem assina o que escreve. Os noticiários das televisões têm agendas iguais. E alinhamentos de notícias também. Os directos, grande vício da televisão portuguesa, são iguais em todos os canais. Cada vez mais, a informação está previamente organizada, não pelas redacções, não pelos jornalistas, mas pelos agentes e pelos assessores. Quem tem informação manda em quem investiga, escreve e transmite. Grande parte da informação é encenada e manipulada, de acordo com as conveniências. Há informação reservada para melhores momentos, informação programada para dramatizar, informação inventada para divertir e informação acelerada para consolar. Isto acontece há anos. Em Portugal e no mundo inteiro. Todos os anos, a situação piora. Com Sócrates, refinou. O poderio das organizações de comunicação é avassalador. A opinião pública não tem meios para escolher e resistir. Só a independência dos jornalistas poderia fazer frente a este domínio inquietante. Mas esta é um bem raro. Até porque os empregos na informação são cada vez mais precários.
A RECENTE POLÉMICA SOBRE AS AGÊNCIAS DE COMUNICAÇÃO, novo episódio numa longa série, mostrou esta actividade no seu pior. As mesmas agências comunicam a favor dos adversários, da política e da economia, da polícia e do ladrão, do governo e da imprensa. Do atirador e do alvo, como disse Pacheco Pereira. Até a Entidade Reguladora para a Comunicação, sem ver os efeitos nefastos, achou por bem ter uma agência a tratar da sua informação. O governo tem a sua. Luís Filipe Menezes também: em vez de denunciar a prática do governo, quis imitá-lo. Foi preciso Santana Lopes, em momento inspirado, opor-se a este despotismo: “O modo e o conteúdo da comunicação fazem parte do domínio da liberdade absolutamente inalienável de cada deputado”.
LUÍS MARQUES, JORNALISTA HÁ VÁRIAS DÉCADAS e com experiência da redacção, da direcção e da gestão da informação, em jornais e na televisão, fez há poucos anos um pequeno estudo sobre as “agendas” de informação. Chegou a resultados surpreendentes. Contando apenas os grandes órgãos de informação generalistas e nacionais, com exclusão das secções mundanas e outras, havia em Portugal cerca de 1.500 profissionais. Para os alimentar de informações, os assessores, as agências de comunicação e outros somavam quase 3.000. Quer dizer, por cada jornalista em actividade na informação política e económica, dois profissionais preparavam as agendas e as notícias. É esta gente que inunda as redacções com “factos”, “eventos”, “oportunidades” e “situações”. Qualquer redacção tem dificuldade em resistir-lhe. Se, às 20.00 horas, o Primeiro-ministro sai de um lar de idosos, entra numa creche ou produz uma declaração espontânea, como pode uma redacção decidir não estar presente? É este exército o responsável por grande parte das “entradas” que, durante a manhã, enchem as agendas das redacções. Num grande canal de televisão, essas entradas podem hoje chegar às 1.000 por dia, enquanto eram cerca de 100 há quinze ou vinte anos. Na agenda diária da redacção de um canal de televisão, perto de um terço das entradas (mais de trezentas...) é feito directamente pelas agências de comunicação e pelos assessores dos gabinetes e das instituições. Mais ainda, é aquela brigada que, muitas vezes, sobretudo na informação económica, redige as notícias. Nas redacções, povoadas hoje por jovens estagiários e inexperientes, mas também por seniores preguiçosos, publicar directamente as notícias assim preparadas, ainda por cima por jornalistas e antigos jornalistas treinados, é a solução mais simples. Por isso, é frequente vermos, sem menção de publicidade, notícias económicas absolutamente iguais em vários jornais.
HÁ QUEM PENSE QUE É ISTO A MODERNIDADE. A informação racional da época contemporânea. O sinal da eficácia. O instrumento da transparência. Mas desenganem-se os crédulos. O objectivo dos assessores e das agências de comunicação é sempre o de defender os interesses do autor da informação, nunca do destinatário, do cidadão. A única preocupação do agente é a de vender o mais possível, nas melhores condições, bens ou ideias, mercadorias ou decisões. Os agentes de comunicação não defendem os interesses dos compradores, dos consumidores ou dos espectadores, mas tão só dos vendedores, dos produtores e dos autores. Apesar de pagos pelos eleitores, servem para defender os eleitos. Este é o mundo em que vivemos: a mentira é uma arte. Esta é a nossa sociedade: o cenário substitui a realidade. Esta é a cultura em vigor: o engano tem mais valor do que a verdade.
«Retrato da Semana» - «Público» de 27 de Janeiro de 2008

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5 Comments:

Blogger O Puma said...

A MENTIRA É UMA ARTE -

COMO EU O COMPREENDO

BARRETO

27 de janeiro de 2008 às 23:20  
Anonymous Anónimo said...

Obviamente, que alguns, poucos por sinal neste país, já se aperceberam que uma parte substancial da classe jornalística há muito que deixou de ser independente do que quer que seja. Daqui não viria mal ao mundo se em determinados casos-e em relação à política-assumissem claramente uma tendência ideológica, se é que há mesmo... O grande problema é que continuam a surgir perante a opinião pública "mascarados", de um poder vigilante e completamente insubmisso. Mentira tudo mentira, dão muito nas vistas. No fim disto tudo, destes tempos tecnológicos, só não sairão completamente chamuscados porque os portugueses continuarão iguais a si próprios....

28 de janeiro de 2008 às 09:27  
Blogger Jack said...

Como é do conhecimento de todos nós, “O Admirável Mundo Novo” foi um livro escrito por Aldous Huxley, umas largas décadas atrás, e, se bem lembro, não era mais do que o retratar de uma sociedade completamente organizada, segundo um certo modelo idealizado numa base puramente científica ou virtual. A vontade estava condicionada por normas perfeitas e inatacáveis, que afastavam qualquer tipo de expressão livre e individual, e conduziam a plebe a uma servidão absoluta escudada numa felicidade atingida apenas com recurso a produtos químicos, ministrados ao povo sempre que as dúvidas assaltavam as mentes mais esclarecidas. Como se isto não bastasse eram-lhe administradas ideologias em doses “cavalares”, as quais, para mais facilmente serem absorvidas pelos pobres cérebros dos governados, eram ministradas durante o respectivo sono.
Ao ler este e outros textos de AB, parece-me, sinceramente, que essa ficção se tornou hoje realidade. As novas tecnologias aliadas ao problema do défice, a desordem que alguns apregoam conjugada com a falta de segurança das pessoas, o corporativismo de uns quantos lado a lado com a falta de produtividade de outros, constituíram-se como ingredientes imperativos e necessários à brusca transformação da nossa pobre sociedade. Sociedade que não era boa, mas também não era má, não era justa, mas também não era totalmente injusta. Como resultado dessa transformação, passámos a viver, também nós, num mundo virtual em que impera o EXCESSO DE ORDEM e, só é compreensível e desejável por um grupo de iluminados que vê no actual governo e no seu líder, a força que nos irá conduzir, até ao fim do actual mandato, ao “Admirável Mundo Sócrático”.

R. Morais

28 de janeiro de 2008 às 14:30  
Anonymous Anónimo said...

Pois é, o actual (des)governo socrático não só refinou a arte de mentir, mas sobretudo tem abusado. Trata-se de um comportamento compulsivo (que já vem de longe, como referia o anúncio...) e malignamente doentio. A mentira, a omissão e a ilusão preversa, como denominador comum de uma equação socrática, que tem contribuído para acentuar o agravamento da actual crise de valores e dos mais elementares princípios éticos da política como actividade nobre do Homem.

28 de janeiro de 2008 às 14:42  
Blogger António Viriato said...

Cabe aos profissionais da comunicação, aos verdadeiros jornalistas, relatar os factos com verdade, com vista ao esclarecimento dos leitores ou dos ouvintes, para que eles compreendam o que acontece no mundo, para formarem a sua consciência cívica.

Fora disto, entramos no domínio da Propaganda, que é onde nos atolamos cada vez mais e, daqui, só vem alienação.

29 de janeiro de 2008 às 01:27  

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