Diz que é uma espécie de chantagem
Por João Miguel Tavares
ESTAVA EU ENTRETIDO a mastigar o jantar quando Manuel Alegre irrompeu pelos telejornais das oito com aquele ar de quem acha que o País está necessitado de um novo 25 de Abril, a ameaçar com voz cavernosa: "Vocês não me desafiem, que eu vou às urnas." Fiquei logo com um naco de vitela entalado no esófago: é impressão minha ou o bardo do Mondego decidiu chantagear José Sócrates em horário nobre? Ai decidiu, decidiu. Alegre entende - e entende bem - que os níveis de socialismo no Partido Socialista desceram abaixo do aceitável, que este PS já não sabe a PS, e com o seu perfil profético e a fama de consciência da esquerda está cheio de vontade de fazer no Largo do Rato o mesmo que Jesus Cristo fez nas bodas de Caná: transformar a água em vinho.
Sócrates, evidentemente, que gosta mais de Vitalis do que de Barca Velha, deve ter começado a ver a vida a andar para trás. O que faltava agora era ele acabar refém de Alegre para garantir mais quatro anos à frente do País. Porque uma coisa é Sócrates sentir-se obrigado a dizer em todas as entrevistas que Manuel Alegre é uma das suas referências na literatura; outra coisa é ser obrigado a fingir no dia-a-dia que ele é uma das suas referências na política. Recorde-se que durante a recente remodelação governamental surgiram notícias a garantir que Alegre teria tido um papel decisivo no afastamento do ministro da Saúde. Na altura, eu não quis acreditar. Agora, já não ponho as mãos no fogo - e, quando se dá um dedo à "consciência da esquerda", ela acaba a pedir o braço. É esse o ponto em que estamos.
E como em tudo na vida, há um lado positivo e um lado negativo. O lado positivo é que até a mais alienada das almas reconhece que a despolitização da política em Portugal foi muito mais longe do que devia, e que toda a gente teria a ganhar se PS e PSD parassem de fingir que são diferentes e começassem realmente a ser diferentes. É um ponto em que Manuel Alegre tem toda a razão: o "pensamento único" infecta a democracia e a gestão musculada de Sócrates à frente do Partido Socialista (e do Governo) tem deixado no País o cheiro desagradável dos quartos mal arejados. Mas a investida alegrista encerra um perigo óbvio: é que à esquerda de Sócrates só há poesia ideológica e à sua direita há um PSD desvairado, nas mãos de Menezes e Santana. Por mais irritante que Sócrates seja - e demasiadas vezes é -, nada disto se assemelha a um mínimo de alternativa de Governo. Montado nos 20% das presidenciais, Manuel Alegre mete medo a Sócrates, e tendo em conta o tamanho do seu ego isso deve diverti-lo muito. Mas ninguém se lembraria de dar ao Grilo Falante o papel principal de Pinóquio.
«DN» de 12 de Fevereiro de 2008 - c.a.a.
Etiquetas: JMT
7 Comments:
Prefiro mil vezes a "poesia ideológica" - este termo parece cunhado por um maoísta - da ala esquerda socialista, do que o cinzentismo subserviente ao poder económico (que é de onde lhe chegam os generosos financiamentos) em que está transformado o aparelho do PS.
Claro que ninguém quer um grilo falante a fazer de pinóquio, até porque o papel já tem dono e uma série de clones à espera de vez.
Basta ver a desfaçatez com que "faltam à verdade"...
Grilo falante? Não!
O que todos nós precisamos é de um papagaio blogueiro!
Quanta agressividade para com um homem que teve 20% numa votação nacional!
Concordo que se critique, mas chamar nomes (ainda por cima despropositados) a um politico com tamanho curriculo, parece-me que pode ser meio caminho andado para legitimar a mesma critica em sentido contrário.
O Sócrates e o Manuel Alegre parecem-me complementares, pelo que um diálogo frequente entre ambos parece-me que pode ser muito produtivo.
Como neste momento o poder é de Sócrates, é com muito agrado que vejo o crescer de importância de Manuel Alegre.
Não acho especialmente brilhante a ideia de Manuel Alegre com um papel decisivo nos destinos do país, mas também Sócrates tinha uma aura de politico débil antes de ser Primeiro-Ministro; Ora veio a provar-se exactamente o contrário.
Assim sendo parece-me que Manuel Alegre tem muito mais legitimidade do que a grande parte dos agentes politicos para falar precisamente de politica.
"ESTAVA EU ENTRETIDO a mastigar o jantar quando Manuel Alegre irrompeu pelos telejornais das oito com aquele ar de quem acha que o País está necessitado de um novo 25 de Abril, a ameaçar com voz cavernosa: "Vocês não me desafiem, que eu vou às urnas." Fiquei logo com um naco de vitela entalado no esófago: é impressão minha ou o bardo do Mondego decidiu chantagear José Sócrates em horário nobre?" -> é por causa destas coisas que cada vez mais estou a ficar fã do João Miguel Tavares... só não copio tudo na íntegra outra vez porque até parecia mal.
abraço
mas também Sócrates tinha uma aura de politico débil antes de ser Primeiro-Ministro; Ora veio a provar-se exactamente o contrário.
Exactamente o contrário de "político débil" é "débil político".
De acordo.
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