19.3.08

As não-notícias

Por Alice Vieira
TODOS OS JORNAIS trazem a notícia: a filha de Elvis Presley anunciou que está à espera do terceiro filho.
Os jornais esclarecem ainda que a dita filha do “Rei” se viu forçada a anunciar esta notícia ao mundo porque - imaginem! — mentes perversas tinham posto a circular o boato de que ela estaria a ficar gorda.
Óptimo.
Mas que temos nós a ver com isso? Que importância tem a filha do Elvis, (para além de, por um simples acaso de genes, ser filha do Elvis), mais o terceiro filho da filha do Elvis, mais as banhas da filha do Elvis?
Aqui há dias dei comigo, quase sem querer, a folhear um jornal só para ver a quantidade de não-notícias que enchiam as suas páginas: e era um espectáculo confrangedor. Entre elas lembro-me de uma em que se dizia: ”três pessoas de uma família intoxicadas mas sem gravidade”. O que, depois de lida a notícia até ao fim, se podia resumir numa simples frase: três pessoas comeram demais, ficaram maldispostas, vomitaram e ficaram boas.
Mais uma vez: óptimo.
Mas mais uma vez pergunto: e que temos nós a ver com isso? Em que é que isso, certamente lamentável para o bem estar das três pessoas da família, interessa a ponto de vir num jornal nacional?
Há dias a minha vizinha de baixo caiu, teve de ir às urgências, levou três pontos na cabeça, passou a noite em observação, saiu no dia seguinte e ainda está sob vigilância médica. Se calhar também devia ter vindo no jornal, trazendo atrás de si um rol de queixas contra as urgências, o SNS, e essas coisas todas.
E esta proliferação das não-notícias ataca igualmente - e de que maneira - as televisões: como aquele senhor que se tinha sentido mal na rua, tinha chamado a ambulância e, enquanto ela não vinha, estava sentado numa cadeira e dava uma sorridente entrevista para as câmaras sobre o assunto.
E de repente lembro-me do Albano Negrão, meu saudoso camarada de lides jornalísticas que, de máquina ao ombro, ia sempre comigo fazer a fatal reportagem das inundações na Caparica, no tempo em que ainda não havia paredão e, mal rebentava o Inverno, aí vinha o mar.
Uma vez o Negrão decidiu colocar-se diante de uma casa construída muito perto da praia.
- Queres ver como vem aí uma onda e ela vai cair num instantinho? - disse.
E ali ficou horas, a chuva a enregelar-nos o corpo, e ele a murmurar:
- Cai! Vá lá! Cai! Cai!
Mas, vá-se lá saber porquê, a casa não caiu. Nem ela nem as que estavam perto dela.
Lá regressámos ao jornal, muito a custo, confesso, com o Negrão sempre a culpar-me por não termos lá ficado a noite inteira, “tenho a certeza de que ela acabava por cair!”
E durante muitos dias ninguém o conseguiu aturar na redacção, porque a maldita da casa, tal como outras por ali perto, tinha continuado de pé, e assim não tinha havido drama, nem notícia nem fotografia.
Se fosse hoje, é claro que havia: uma grande fotografia possivelmente a toda a largura da primeira página, com a desgraça que não tinha acontecido, as casas que não tinham caído, e a notícia que não tinha havido.
«JN» de 16 Mar 08

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7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Há dias, a capa do «Correio da Manhã» (ou do «24 Horas», já não sei) fazia capa inteira com a 'notícia':

«Irmã de Alexandra Lencastre perde filho» (em aborto espontâneo, segundo percebi).

Ainda se a notícia fosse sobre a Alexandra Lencastre, talvez se aceitasse, pois ela, como muitas outras pessoas do género, expõem sem pejo a sua vida privada como meio de serem faladas.
Mas a irmã dela? E elevada à categoria da notícia mais importante do dia?!

19 de março de 2008 às 12:18  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Como há um mercado gigantesco para essas "notícias" (facto que tem a ver com a cultura dos povos e o poder de compra das classes sociais que as consomem), suponho que pouco haverá a fazer a curto prazo.

No entanto, será de esperar que haja alguma "relativização/hierarquização" dos assuntos, no destaque que se lhes dá - critérios que, naturalmente, variam de uns órgãos de C. Social para outros.

19 de março de 2008 às 12:39  
Blogger Nuno Sousa said...

Já à muito tempo que não lia nada que estivesse tão de acordo como estou com este texto.

Cumprimentos

Sousa

19 de março de 2008 às 13:27  
Blogger R. da Cunha said...

Não sendo consumidor, não posso deixar de ver as capas das (imensas) revistas que por aí pululam. É um fartote de não notícias, de gente mais ou menos (des)conhecida, a expor a sua vida íntima até à náusea: é a gravidez da prima de alguém mais conhecido, é o nacimento do filho, que se espõe desde logo, os amores e desamores dos ainda ou não já apaixonados para todo o sempre, etc., etc. Se não entendo este estendal, ainda menos entendo o voyerismo dos leitores de tais revistas.

19 de março de 2008 às 17:45  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

R. da Cunha,

A explicação é a mesma que faz com que pessoas "sem vida" passem o tempo a cuscuvilhar à janela:

De certa forma, "tomam emprestadas" as vidas dos outros. Revêem-se nelas, como nas telenovelas, com a vantagem de que se trata de pessoas reais.

_

Há dias, assisti a uma discussão terrível, em que uma sra. dizia a outra coisas do género: «Fez ela muito bem em pôr o gajo na rua! E havia de ser comigo, que ainda lhe fazia pior! E tu ouviste o que ele respondeu?!».

Quando prestei atenção, percebi que estavam a discutir um episódio da telenovela da noite, como se se tivesse passado com elas ou com alguém de família!

Trata-se, em geral de pessoas "pobres" - não necessariamente em termos económicos, mas em termos culturais e de vivência.

19 de março de 2008 às 18:12  
Blogger R. da Cunha said...

O que mais me espanta são os "consumidores" (talvez mais "consumidoras", mas não tenho a certeza) destes sub-produtos "culturais". E já me tenho interrogado sobre se há mercado para tanto "lixo". A publicidade consegue pagar o "produto"?
E essa da sra. que dizia que se fosse ela fazia muito pior, faz-me lembrar a estória da Coxinha (da rádio) de há muitos anos. Mas, que raio, os tempos eram outros, bastante piores, convenhamos. Ou muitos de nós ainda andamos por lá?

19 de março de 2008 às 18:34  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Pode até nem ser preciso muita publicidade. Pode acontecer que o preço de capa chegue (ou quase) para pagar a edição. Depende das tiragens.
Em tempos, a «Crónica Feminina» tirava 200 mil!

19 de março de 2008 às 20:39  

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