O dinheiro da infâmia
Por Baptista-Bastos
SÃO IMAGENS DEPRIMENTES, recordadas pelas televisões. Bush sai do avião nas Lajes, acena, ignora-se para quem, gesto maquinal, sorriso levemente tolo. Aparece, face escancarada, comovida de efusão, o inevitável Durão Barroso. Bush, paternalmente, coloca-lhe a mão no ombro e estugam os passos. Depois, os abraços entre Blair, magnífico socialista; Aznar, piedoso membro da Direitona espanhola; e o Imperador impante. Durão indica o caminho para lá, e fica à porta de cá. Enquanto os outros conversam amenamente sobre mortos e feridos, danos colaterais e outras trivialidades, Durão Barroso, numa esplanada, toma uma bica.
Fez cinco anos que, em território português, três cavalheiros premeditaram a invasão do Iraque, cujas trágicas consequências adquiriram inaudita extensão. Para nosso escarmento, o então primeiro-ministro de Portugal desempenhou o papel de porteiro. O cortejo de misérias, ainda hoje ininterrupto, não recusou a tortura e a condenação à morte, justificadas como resposta ao terrorismo pela consciência doente de articulistas estipendiados e de políticos abjectos.
A concentração ética do que havia de mais fecundo na civilização ocidental foi depredada em pouco mais de uma hora. As vozes que se ergueram, condenando o previsível genocídio, foram abafadas pelo coro proclamador de uma falaciosa cruzada da liberdade contra o tirano. E, apesar de relatórios volumosos e de investigações prolongadas terem provado a inexistência de armas de destruição maciça, e de não haver nenhuma ligação entre o Iraque e a Al-Qaeda, a sentença estava ditada. Bush, reeleito através de uma fraude, desencadeava uma guerra com base em uma mentira. Depor Saddam foi o pretexto seguinte. Também adulterado. Os Estados Unidos detêm um rol numeroso de ditadores por eles sustentados e caucionados. E igual quantidade de sangrentos golpes contra democracias instituídas, e assassínios de dirigentes políticos que lhes são desafectos. Testemunhei alguns, em países da América Latina, e assisti à admiração funesta de quem havia traído os testamentos morais e aceitado os 30 dinheiros da infâmia. Não há transcendência no mal, assim como devemos condenar a sua banalização mediatizada. A sequência filmada do enforcamento de Saddam Hussein eleva a circunstância do horror à desumanização total dos sentimentos.
Qual o grau de sofrimento infligido a um povo que nos faz reavaliar a noção de vítima e de mártir, a fim de podermos julgar a dimensão infernal do algoz? Tudo é relativo; porém, nem tudo resulta de um mal-entendido. O carácter da invasão do Iraque resulta da premeditação de uma violência que, um pouco por todo o lado, vai alimentando a sede de domínio do Império.
«DN» de 19 Mar 08
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