2.3.08

A eterna questão

Por António Barreto
O PRESIDENTE DO PSD, Luís Filipe Menezes, surpreendeu. Declarou intempestivamente que, se fosse governo, acabaria com a publicidade na RTP. Senti um imediato júbilo. Há anos que venho crescendo em repulsa pela publicidade. É excessiva, tanto na televisão pública, como, mais ainda, nas privadas. São centenas de inserções por dia, para um total médio de quase quatro horas por dia e por canal. Interrompe tudo e todos, é colocada em qualquer sítio, entre ou no meio de programas, antes, durante e depois dos telejornais, com ou sem propósito, com ou sem aviso. Apesar das regulamentações apertadas que as iluminadas leis portuguesas prevêem, todos os canais “abertos” violam mais ou menos as normas em vigor. Todos encontraram dispositivos que lhes permitem garantir que, formalmente, respeitaram a lei, mas que, na verdade, são instrumentos sofisticados para a contornar. O número de “spots”, os minutos por hora e as horas por dia ocupados com publicidade, tudo minuciosamente regulamentado na lei, são poucas vezes respeitados. Procedimentos proibidos, tais como o “product placement” (em termos simples: colocação de publicidade clandestina dentro dos programas, designadamente telenovelas, separadores, debates, espectáculos desportivos, etc.), são o prato do dia em todas as estações. A publicidade é incómoda e cansativa, um verdadeiro massacre sonoro, estético, cultural e moral. Engana-se o consumidor todos os dias. Há por ali violência quanta se quiser. É muito frequente ser sexista e machista, quando não descaradamente obscena. Há momentos de antologia, como aquele “spot” da Opel, em que um homem trazia uma mulher ao colo e a entregava ao sogro: depois da experiência, não ficara satisfeito e devolvia a mercadoria à procedência. Parece que o fabricante de automóveis também faz isso com os carros.
O MERCADO DA PUBLICIDADE é um dos mais opacos e letais que se pode imaginar. As televisões quebraram os preços e quase assassinaram definitivamente os jornais. Quem quiser estudar e conhecer melhor o que se passa neste negócio, tem de ser advertido que as tabelas em vigor, de conhecimento geral e oficial, não são as praticadas. Na verdade, em média, os preços praticados pelos canais, pelas agências e pelos clientes são cerca de um quinto das tabelas oficiais. De qualquer modo, os “spots” só são pagos depois de terem sido exibidos os programas em que foram inseridos, isto é, os preços só são estabelecidos depois. Se os programas em causa têm as audiências prometidas, o cliente paga o previsto. Se não, os canais de televisão têm de reembolsar ou compensar o cliente. Isto exerce uma pressão terrível sobre os programadores e mesmo sobre a informação. Também as notícias têm de “dar audiências” a qualquer preço. É por este meio que as empresas anunciantes e as agências exercem influência sobre a programação que não é, definitivamente, livre e independente.
POR ESTAS E OUTRAS RAZÕES, a hipótese de vir a ter, um dia, uma televisão pública livre de poluição publicitária aqueceu-me o coração. Todavia, após os primeiros reflexos de contentamento, surgiram as interrogações. Por que razão pretende um partido da oposição aumentar os custos da RTP e ter de recorrer ao orçamento, isto é, aos contribuintes? Nestas novas condições, como pagar a RTP? Como financiar o serviço público? Já se sabe que o orçamento (indemnizações compensatórias, reforços de capital e taxas de audiovisual) não chega. Sem as receitas de publicidade, a televisão pública fica ainda mais à mercê do poder político. A promessa do PSD, sem proposta de sistema alternativo que garanta a independência da informação, a qualidade da programação e a solidez financeira da estação, é ridícula e parece demagógica. Ou então tem objectivos não formulados. Um pode ser simplesmente o de reduzir o serviço público ao mínimo, eventualmente ao serviço oficioso do governo. Outro será o de reforçar a mão pesada do governo sobre a administração da RTP que, para ter dinheiro, tem de fazer o que se lhe pede. Outro ainda poderia ser o de oferecer um presente dourado à SIC e à TVI, qualquer coisa como 50 milhões de euros de receitas. Também pode ser a vontade do PSD (na oposição, em crise e sem grandes perspectivas) ter desde já duas televisões privadas gratas e mais simpáticas. Finalmente, não é de excluir o desejo de permitir a um amigo a criação do quinto canal, o terceiro privado, que necessita de receitas para sobreviver.
DE IGUAL MODO, é absurdo propor esta medida sem apresentar, previamente ou ao mesmo tempo, as linhas de força do que se entende por serviço público, seus objectivos e natureza da sua programação. A discussão sobre o serviço público nunca termina, o que faz sentido. Afastá-la é que não. Até ao princípio deste ano, a RTP estava, parece, em boa situação financeira. Ou antes, o seu programa de saneamento financeiro estava bem encaminhado. Com esta atoarda, tudo pode ser posto em causa. Além disso, também desde o início do ano, começou a criar-se, nos canais públicos, um clima de crise e de deriva, já visível na programação. Com este anúncio, as coisas não melhoram, antes pelo contrário. Mesmo que o PSD não ganhe as eleições, ou mesmo que ganhe mas não se concretize a ameaça, o mal está feito e a perturbação criada. Percebe-se todavia que L. F. Menezes quer ajustar contas com a televisão. Pública ou privada, aliás. Não se esquece a sua proposta de designar quem deveria estar presente nos programas de debate que os vários canais organizam. Parece que não gostava de quem lá estava e que pretenderia nomear pelo menos aqueles que fossem “da área” do PSD. Com estes aperitivos, podemos facilmente prever o que será o resto da refeição. É possível que L. F. Menezes tenha um problema com a televisão. Mas fica-se com a certeza que o problema é dele, não da televisão.
«Retrato da Semana» - «Público» de 2 Mar 08

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1 Comments:

Blogger leao said...

A publicidade é realmente um atentado ao juízo das pessoas, o serviço público não a devia ter. A RTP2 não tem publicidade por isso devia ser o único canal público.
Se o estado não tem nenhum jornal, porque tem de ter vários canais de televisão e de rádio? Se for para servir de referência ao mercado, penso existir algum equívoco. Ao captar receitas de publicidade, a RTP, o melhor que consegue, é precisamente obrigar os privados a baixar o nível para conseguirem audiências.
Com a rápida mudança que está a acontecer nos canais de comunicação, a televisão não se prevê possa desaparecer, vai é certamente perder importância.
Os novos canais na Internet, ao contrário da televisão, não nasceram de investimento público, não vai o governo da nação conseguir instalar-se primeiro.

3 de março de 2008 às 10:02  

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