25.3.08

Não à Baixa do Botox

Por Manuel João Ramos
É EVIDENTE O CONTRASTE entre o sentimento de urgência que autarcas, urbanistas, comerciantes e promotores imobiliários têm em relação aos grandes projectos de “revitalização” da Baixa-Chiado e o desinteresse da grande maioria da população lisboeta em relação àquela zona da cidade.
“Reabilitar”, “revitalizar” e “requalificar” são termos recorrentes que se conjugam, num discurso tornado hegemónico, com fórmulas como “criar espaço comercial”, “promover o produto”, “fazer uma montra”. Os munícipes observam em silêncio submisso, despreocupado ou descrente, o património edificado da Baixa Pombalina ser invocado para justificar complexas operações financeiras e administrativas que o seu horizonte cognitivo não alcança.
Os prometidos planos de investimento no território urbano que o presidente da Câmara designou recentemente como a pérola da cidade têm como fundamento primordial o desígnio turístico da Baixa. “Recuperar” (ou seja, reconstruir) aquele conjunto pombalino e pós-pombalino, injectar habitantes em edifícios modernizados e gentrificados, salpicar o terreno com templos museológicos são passos de uma rotina planificadora já muito bem oleada noutras grandes cidades europeias, e que passa sobretudo pela necessidade imperiosa dos municípios de gerar receita através do imobiliário e da promoção turística, e pela ânsia do grande capital em investir na aquisição de pérolas.
O processo legitima-se por si mesmo, isto é, pelo facto de ter de ser assim porque se tem feito assim noutras cidades europeias. O modelo é este e não há que o questionar.
Mas não podemos mesmo questionar o modelo?
Durante dois séculos, todos aqueles que deixaram algo escrito sobre a Baixa coincidiram na opinião de que os edifícios pombalinos eram feios, monótonos, aborrecidos, sem qualquer monumentalidade. Fruto da mente e engenho de militares, os quarteirões da Baixa foram sempre vistos como peças de um aquartelamento. No meio século seguinte, o discurso mudou no sentido da sua patrimonialização. Mas, em simultâneo, o património arquitectónico e urbanístico da Baixa começou a ser intensamente vandalizado. Primeiro pela banca, depois pela fuga dos habitantes, pela ausência de manutenção e por esventramentos dos interiores, e finalmente pela decadência do comércio tradicional e pela construção de parques de estacionamento, de caves e de um túnel à boca do Terreiro do Paço que afectaram profundamente os fluxos hídricos subterrâneos e consequentemente as fundações dos imóveis.
O Património arquitectónico pombalino é hoje praticamente irrecuperável. O espaço é dificilmente revitalizável como espaço urbano orgânico. Mas é ainda cenarizável. Tratando-se de um casco moribundo e ainda por cima deserto, é mesmo particularmente apetitoso como brinquedo para urbanistas e promotores imobiliários.
Algo de semelhante aconteceu em Barcelona, a cidade que está hoje nas bocas do mundo como a nova Meca turística europeia. Barcelona é o modelo inquestionável e universalmente invejado de cidade de sucesso, de cidade-espectáculo, de cidade-fashion. Tanto mais que o Ayuntamiento tem fechado os seus balanços anuais de contas com superavit. Mas pergunte-se a qualquer barcelonês sobre o que é viver constantemente assaltado por turbas de turistas, chocado por dislates arquitectónicos e aborrecido por aventuras museológicas, e a resposta será sempre a mesma. Barcelona é uma cidade infernal. Boa para “unas copas” mas insuportável para viver.
Mas, se perguntarmos ao catalão (e ao castelhano e ao andaluz e aos outros) onde gostaria mesmo de passear, ele dirá que, sem sombra de dúvida, na Baixa de Lisboa. Como se prova todos os anos, por altura da Páscoa.
Porquê matar então, a golpes de “revitalização”, a galinha dos ovos de ouro? E, já agora, que conta a CML fazer à pequeníssima minoria de lisboetas que têm a sina e o privilégio de viver na Baixa? Dar-lhes um subsídio mensal e um trajo de gala para serem mostrados como seres exóticos a turistas low-cost e a condóminos high-brow?
«24 Horas» de 24 Mar 08

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2 Comments:

Blogger Jack said...

Nem queria acreditar no que hoje li no Público "Juristas ganham 1,67 euros por cada multa de trânsito
Trinta e dois advogados começam hoje a trabalhar na Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) para tentar evitar a prescrição de milhares de processos de contra-ordenação. Pela frente têm uma tarefa árdua: separar um mínimo de 1000 processos por dia, e fazer pelo menos 30 propostas de decisão diárias. Cada proposta é paga a 1,67 euros e cada lote de processos separados vale 50 euros. Se um jurista cumprir um daqueles objectivos ganha ao final do mês cerca de 1050 euros".

Mas que Estado é este? A seguir vem o quê? Nas Finanças, contratam pessoal para fiscalizar mil impressos do IRS por dia? Médicos para atender 1000 doentes por dia? Esperto foi o Vara, Relações Internacionais é que está a dar.

25 de março de 2008 às 11:27  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Caro INF-1962,

Coloquei um post dedicado a este assunto das multas.
Não quer copiar este seu comentário para lá?

25 de março de 2008 às 15:23  

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