18.4.08

Retrato do poeta sempre jovem

É UM VELHO À DESFILADA, num automóvel que corre junto ao mar.
Pergunto-lhe:
- Rafael, porquê sempre o mar nos poemas?
Responde-me:
- Não é o mar nos poemas. É esta baía. Nem nos mais de trinta anos que me obrigaram a levar fora deste país deixou de ser esta baía. Está aqui tudo. Passaram por aqui todos. Romanos, Fenícios, Cartagineses, Árabes. Está tudo escrito nesta baía. Não é o mar nos poemas. É esta baía.
Vamos à desfilada, eu e o Rafael Alberti, oitenta e quatro anos de andaluz, de cidadão do mundo, de guerra pela liberdade, oitenta e quatro anos de poesia. Fisicamente, está cada vez mais parecido com José Gomes Ferreira, longa cabeleira branca a cair-lhe amarelada sobre os ombros, mil rugas na pele escura. Minutos antes, ao entrarmos no carro, fora rodeado por um bando de adolescentes que lhe pedira autógrafos, como é normal os adolescentes pedirem a um cantor de rock, a um futebolista, actor de cinema ou toureiro. Não havia papel, ninguém tinha papel, e Rafael Alberti escreveu o seu nome e desenhou o seu peixe, que sempre acompanha o nome que assina, juntamente com uma estrela, na pele morena daquelas jovens e daqueles jovens.
Ficaram como tatuagens, nas costas e palmas de mãos e nos antebraços de todos aqueles jovens, que um dia mostrarão as mãos estendidas para os filhos, quando estes descobrirem os poemas de Rafael, e dir-lhes-ão:
- ... E sorriu para mim e escreveu aqui o nome. E depois desenhou um peixe, como os cristãos no tempo de Roma, e uma estrela de cinco pontas e voltou a sorrir para mim. Era um poeta, era um raio de um andaluz.
Olhou-me de esguelha e disse:
- Tens aqui três mil anos de história escrita. Está no papel. Por isso, não há que ter dúvidas. Quando se tem dúvidas vem-se aqui, a esta baía, e ela responde a tudo. Estiveram cá todos, à procura da resposta: Fenícios, Cartagineses, Romanos, Árabes e agora nós e os Americanos.
E com um orgulho nacionalista de quem resiste ao invasor:
- Estiveram cá todos. Todos menos os Franceses. Esses andaram pela Península, mas aqui não os deixámos pôr os pés. Por isso, homem, é que se tem de entender as Cortes e a Constituição de Cádis.
Viajamos à desfilada, junto ao mar, entre Cádis e Puerto de Santa Maria. Estamos próximos de Jerez de la Frontera, corremos ao longo da baía e antes faláramos de Buñuel e de Picasso, seus companheiros de exílio em Paris, de Piazzola e do que cada um de nós conhecia de Buenos Aires e de Roma. E disse-lhe eu:
- Homem, tens tantos anos que pudeste gastar muitos deles por todos esses sítios e com toda essa gente.
Eu sabia que só a um homem fresco de corpo e de espírito se pode falar de anos. Mas este é um jovem com oitenta e quatro anos de gozo e de guerras, as duas coisas que penso que se devem fazer, cada uma no intervalo da outra. Sei que não se deve magoar um velho falando-lhe de anos, mas este é um jovem com muitos anos. Ou não será um jovem com muitos anos aquele que já com mais de oitenta se apaixona e desperta paixões em mulheres frescas?
Além do mais, falámos destas e de outras coisas, bebericando goles de xerez e conversámos também da importância do vinho e da respectiva rota no conhecimento e na amizade dos povos.
E ele desse-me:
- Vê tu o meu nome, Alberti. Não é espanhol. É italiano. Aqui na baía há apelidos de todas as nacionalidades. Eles vinham buscar o xerez, e as nossas mulheres prendiam-nos e eles ficavam por cá. Está tudo nesta baía. A baía responde a tudo.
E conversámos sobre os Ingleses, o vinho do Porto e o seu primo afastado que é o xerez e de muitos nomes que à volta desta baía de facto existem, e ela de facto a tudo isto respondia, mesmo nas picantes histórias de mulheres.
O automóvel continua a correr junto ao mar. Vamos deixar o velho em mais uma das suas sessões: cartolina gasta com poemas debaixo do braço, a declamá-los de xerez e de uísque por todos os lados. Vira-o fazer isso outra vez, momentos antes. Digno, distante, afável sempre que o interessavam. E antes tivéramos ainda o nosso mano-a-mano de conferências, em sala apropriada a recordar as grandezas dos impérios desaparecidos.
Para mim, recordo um amigo comum que fascinado me descrevia o regresso de Alberti a esta Espanha democrática e o seu itinerário fantasmagórico, calcorreado por Madrid, entrecortado de exclamações «aqui era...» e de descrições detalhadas e rigorosas do que hoje não existe mais.
Vejo-o agora neste salão a ler poemas seus, dactilografados e belos, e penso que devia ser proibido pensar-se que pode haver poetas amestrados. Há muitos anos, conversei também com Ungaretti a bordo de um cruzeiro italiano que ele distinguia de convidado, apenas com a sua presença. E recordei também Jorge Amado, frequentemente exibido à mesa do Estoril-Sol. E vejo agora este velho, que chegou a ser vice-presidente das Cortes, e passeou em ombros pela Andaluzia, não como toureiro ou artista de outro género, mas com herói da liberdade. Olho-o a recitar poemas seus, por entre presunto, queijo, sardinhas alimadas, xerez e uísque e abandono-o assim, especado sob os flashes dos fotógrafos e os projectores do cinema e da TV, a ler poemas avulsos, belos e dignos.
E para minha consolação, ou talvez antes para minha vingança, dou pela minha voz a dizer a mim próprio, sozinho:«É como a baía. Passaram todos por ela. Romanos, Fenícios, Cartagineses, Árabes, e, agora também os Americanos, mas, tal como a baía, não pertence a ninguém.»
Lisboa, 1987

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