Como foi possível?
Por Alice Vieira
POR MAIS QUE QUEIRA, não consigo deixar de pensar naquela história do austríaco que sequestrou a filha num anexo da casa durante vinte e quatro anos, teve sete filhos dela, entregou três para adopção, deitou fogo a um que morreu à nascença, – e ninguém deu por nada!
Em casos destes, que nunca nenhum filme de terror ousaria imaginar, nunca há palavras que possam exprimir o que se sente. Mas, desculpem lá, a palavra que neste momento mais vem à minha cabeça é: espanto.
Um espanto sem limites, daquele que é feito de olhos escancarados e muitos pontos de exclamação.
Primeiro “desaparece” uma jovem de 18 anos e nem a mãe nem outros familiares, nem a polícia, ninguém se preocupa em saber o que lhe aconteceu. Todos acreditam no que diz o pai, que ela foi à vida, seguiu uma seita, e pronto, encolhe-se os ombros, a vida continua.
O facto de o pai ter sido condenado nos anos 60 por violação também parece não incomodar ninguém. É sempre ele que vai encontrando recém-nascidos à porta, como se fossem garrafas de leite largadas de manhã pelo leiteiro, e também isso parece não levantar quaisquer suspeitas.
Ele passa dias e noites fechado a sete cadeados num anexo da casa de que só ele tem a chave e onde não deixa que ninguém entre, numa estranha recriação de Barba Azul do século XXI — e a mulher parece não achar estranho.
Faz obras e mais obras para ampliar o espaço – e a mulher continua a não achar estranho.
Não fala com ninguém? Os vizinhos também não desconfiam de que alguma coisa de anormal se passa? O homem comprou portas blindadas – e ninguém teve curiosidade de saber para quê?
Nasceram sete crianças naquele anexo, mesmo pegado à casa.
A mulher não ouviu nada?
Três dessas crianças viveram quase vinte anos (a mais velha tem agora 19 anos) sem nunca terem saído do quarto.
Crianças são crianças. Dão más noites, têm cólicas, diarreias, lá se vai com elas para a urgência do hospital, têm de ser vacinadas, têm febres altíssimas, doenças, fazem birras, gatinham, caem no chão, partem a cabeça, vão ao pediatra, mudam de alimentação, tomam vitaminas, usam quilos de fraldas, a roupa deixa de servir rapidamente e é preciso substituí-la, acordam de noite aos gritos, fazem barulho, gastam sapatos, água, comida.
Estas crianças nunca passaram por nada disso? Será possível? Será possível que só agora a mais velha tenha adoecido e necessitado de cuidados médicos sérios? E as outras? Das duas uma: ou estão à beira da morte, ou têm uma saúde à prova de bala.
Será possível esconder tudo isto? Será possível que um só homem desse conta de tudo?
A mulher nunca teve curiosidade em saber o que se passava naquele anexo? O homem saía muitas vezes durante o dia, passava férias no estrangeiro – e ela nunca tentou sequer aproximar-se ? Caramba, até a mulher do Barba Azul aproveitava as ausências do marido para desatar a berrar pela irmã!
Naquela casa aparentemente normal, onde iam sendo criadas as crianças que ele “encontrara” à porta, não havia telemóvel, ou mesmo um telefone fixo que ela pudesse usar na ausência do marido para chamar alguém, queixar-se a alguém, partilhar dúvidas, estranhezas, desconfianças?
E será que – com um advogado a dizer que o homem não é nenhum monstro, o que ele precisa, coitado, é de tratamento; e com o próprio a achar que podia ter ainda feito bem pior e por isso não merece grande castigo — será que algum dia teremos respostas para todas estas perguntas?
«JN» de 11 Mai 08
Etiquetas: AV
3 Comments:
Interessante reflexão. O assunto merece um profundo e alargado debate entre psicólogos, criminalistas, sociólogos, médicos...
A ser verdade o que se conta, esta macabra experiência de vida tem de ser estudada por psicólogos e médicos. Como è que estas crianças, as duas mais velhas, receberem instrução? Li que a mãe é que as ensinou a ler e escrever...
Ele n entregou os filhos da filha para adopção. Ele adoptou-os.
É diabólico. É mesmo incompreensivel como é que ninguem suspeitou de nada. Muito estranho.
Horrivel.
Enviar um comentário
<< Home