O fim dos erros
Por Joaquim Letria
O FILHO DUM AMIGO MEU percebeu logo as vantagens do novo acordo da língua portuguesa. Riu-se e decretou:
- O acordo é bestial. Vai deixar de haver erros. Eu sou a favor do acordo!
Foi a mais rápida e prática opinião acerca do novo acordo que tanta polémica tem gerado, ainda que quase nenhum debate sério, no âmbito dos Ministérios da Cultura e da Educação, tenha tido lugar para avaliar da justeza e interesse deste acordo para Portugal.
O Brasil, que é quem melhor trata a Língua Portuguesa, está pacientemente à espera de assinar o acordo. Os africanos, que oficialmente falam a nossa língua, estão caladinhos, moita-carrasco, sem que se saiba se o vão subscrever, ou não. Esta posição deixa, aliás, o acordo reduzido a um protocolo luso-brasileiro, ainda que firmado no âmbito da CPLP, com o objectivo político de termos um idioma unificado.
Quando este acordo estiver em vigor, o grande vencedor será Jorge Coelho, não só porque os contratos da Mota-Engil em Angola passam a ser redigidos à luz do acordo, mas também, e sobretudo, porque poucos hão-de (ou hãode? Ou ão de?) saber como se escreve, e acabarão por preferirem o há-dem da escolha do ex-ministro de Guterres, embora desconhecendo se se escreve assim, ou antes ádem ou adem.
O Português será um idioma que se passa a escrever como der mais jeito e que, de todas as maneiras, está bem. Razão tem, de facto, o miúdo que é filho dum amigo meu. Vai deixar de haver erros…
O que vai ser do Português depois do acordo, pouco interessa. Em Portugal, cada vez mais se fala e escreve inglês ou espanhol em detrimento da nossa língua. E se as pessoas e os povos vão continuar a apanhar o comboio e o trem, a ir de ónibus e de autocarro, de papa bicha ou de bus, para quê uma língua única só para todos podermos dizer e escrever lóbi, óbi, dossiê, robô? Uma coisa é certa: muito nos vamos entreter à volta de receção, recessão ou recepção (que os brasileiros não largarão o “p” para distinguirem a recessão económica da recepção da recepcionista)...
As línguas que mais se falam no mundo são as que mais variantes apresentam e cujos filólogos e Governos jamais pensaram em unificar. Atente-se no castelhano e nas suas 20 variantes, da Argentina à Venezuela, passando por mais duas para o espanhol de Espanha – as variantes moderna e tradicional. Vejamos o inglês, com 18 variantes, da Austrália ao Zimbabwe, incluindo o do Reino Unido e dos Estados Unidos. O francês tem 15 variantes, da Bélgica e Suiça às Índias Ocidentais, passando pelo Mónaco, Costa do Marfim, Senegal e Mali. O árabe tem 16 variantes registadas. O alemão afirma cinco variantes, tantas como o chinês. O servo-croata tem quatro.
Tínhamos que ser nós a confundir a política com a língua e a querer esta unificação à força, a qual antecederá a dominação inevitável pelos brasileiros da língua que lhes deixámos como instrumento da sua unidade nacional e com a qual se projectarão no mundo inteiro, falando uma língua muito bela que deixará no canto mais ocidental da península ibérica um dialecto, com raiz latina, do qual nasceu.
«Mais Alentejo» – Mai 08
NOTA: O Sorumbático oferecerá dois livros (um de um autor português e outro de um autor brasileiro) ao autor do melhor comentário que venha a ser feito a esta crónica até às 20h da próxima quinta-feira, 15 de Maio. Actualização: o vencedor foi o leitor "RC", a quem se pede que escreva para sorumbatico@iol.pt para combinar a escolha e o envio do prémio.
Etiquetas: JL
6 Comments:
A língua portuguesa nunca parou de evoluir e o acordo ortográfico é (ou será), apenas mais um passo dessa evolução.
Se as razões para o acordo são as correctas?
Não sei no que pensavam os seus mentores mas, honestamente, não sou contrário a um acordo deste género.
Não se trata de uma unificação total e absoluta da língua, porque haverá sempre dissonâncias e variantes únicas em cada país, antes se trata de tentar evitar que o Português se parta definitivamente em novas línguas, que dentro de 100 ou 200 anos em nada se assemelham à nossa, no caso, a sua raiz comum.
É verdade, ainda que errado, que este acordo se resume a um compromisso entre o eixo Portugal-Brasil, por razões económicas também, mas sobretudo pela escala dos dois países e pela sua influência no mundo e na lusofonia. Mas apenas com o acordo destes 2 países, se poderá aspirar alcançar com sucesso este projecto ambicioso.
Quanto à sua utilidade, verdade seja dita que no que exclui as telenovelas, esta língua não nos tem trazido grande proximidade. A nossa literatura, como a deles, já tem que ser traduzida para que nos possamos ler com tranquilidade. Quem já experimentou ler um texto do Brasil, com tremas e outras surpresas inusitadas, sabe do desconforto que é.
Não nego o carácter controverso de um acordo deste género, mas se primamos pelo conservadorismo em quase tudo, por que não arriscarmos, inovarmos? Porque não tentar criar um patamar comum a partir do qual a nossa língua se escreva e se fale, dando espaço para que continue a evoluir e a conhecer novos caminhos em cada um dos países que orgulhosamente a usa?
Extra-concurso, aqui fica um texto apanhado em:
http://maissempremais.blogspot.com/2008/03/perguntas-lngua-portuguesa.html
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Perguntas à Língua Portuguesa
Por Mia Couto
Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?
Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?
Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
• Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
• No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
• A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
• O mato desconhecido é que é o anonimato?
• O pequeno viaduto é um abreviaduto?
• Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
• Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
• Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
• Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
• O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
• Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
• Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
• Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
• Mulher desdentada pode usar fio dental?
• A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
• As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
• Um tufão pequeno: um tufinho?
• O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
• Em águas doces alguém se pode salpicar?
• Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
• Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
• Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
• Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.
Devolver a estrela ao planeta dormente.
Mia Couto é um pintor de palavras; habituou-nos a ler os seus textos e sonhar com toda a multiplicidade de palavras que é possivel inventar com a nossa língua. Normalmente legislar significa também cercear essa possibilidade.
Leio há muitos anos textos em português do Brasil e não tenho problema nenhum com isso. Aliás, até acho interessante de vez em quando descobrir novas palavras da língua portuguesa usadas no Brasil (ou em África, ou em Timor).
Lidei com alguns brasileiros no estrangeiro e sempre os ouvi dizer que falavam português, e não brasileiro ou português do Brasil.
Neste assunto como em tantos outros parece que os politicos se preocupam (e entretêm o povo) com as coisas menos importantes e deixam as mais importantes por resolver. Ou então só poderá ser por razões económicas ainda não completamente reveladas.
Tenho dúvidas na necessidade do acordo ortográfico. Acho que irá criar ambiguidades que agora não existem.
O «Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico», que já leva umas 28 mil assinaturas, pode ser subscrito [aqui]
O vencedor foi o leitor "RC", a quem se pede que escreva para sorumbatico@iol.pt para combinar a escolha e o envio do prémio.
Já agora, o servo-croata tem 5 versões. Sérvia, croata, montenegrina, macedónia e bósnia. Penso que a quinta ainda não tivesse sido actualizada por causa da ainda recente separação entre Sérvia e Montenegro.
A propósito, segundo parece, as diferenças na língua são menores entre esses países que aquelas que existem entre o Brasil e Portugal. A maior diferença consiste no uso de alfabeto cirílico (mais comum na Sérvia) ou latino (o usado na Croácia). De resto, um sérvio de Belgrado tende a dizer que entende melhor um habitante de Zagreb do que alguém do sul da Sérvia.
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