9.5.08

Os agás mudos são uma gaita

VIA-SE, PERFEITAMENTE, que estava a pensar enquanto esmagava meticulosamente a ponta do cigarro no cinzeiro apinhado de beatas e cinza solta. Depois, com vagar, levantou para mim os olhos míopes e, sentencioso, disse, definitivo:
- Os agás mudos são uma gaita!
Agradeci e saí, acabrunhado, depois de ouvir a sentença a que recorrera, como mulher atraiçoada que recorre a quiromante estabelecida. Tinha-me recordado de procurar este amigo, velho revisor solitário e silencioso de letra de imprensa, classe que muito prezo e respeito, depois da minha última crónica. Durante anos conhecera-o num jornal em que trabalhei, lendo prosa avulsa de dezenas de homens e mulheres, entre a qual muita por mim produzida, e sempre mantivéramos, no decorrer dos tempos, vigorosas e interessantes discussões sobre sintaxe e semântica. Depois de me reler em letra de forma, quedei suspeitoso e intrigado, concluindo que algo de estranho se abatera sobre o que escrevo nestas crónicas, nas últimas semanas, a ponto de me sentir vítima de maldição faraónica.
Reli, uma vez mais, o que escrevera e, de reflexão em reflexão, envergonhado, confirmei a presença sistemática, ostensiva, mesmo ofensiva, de todos aqueles agás. Geralmente, agás fora de onde devem estar não fazem mal, porque são mudos e nunca aspirados na língua portuguesa, e desde que não combinados com outras consoantes que os costumam acompanhar são facilmente atribuíveis a erros tipográficos e o leitor não se preocupa com eles. Quando o leitor dá por eles diz. «Olha um agá mal acompanhado.» E, nas letras como em tudo, as companhias têm muita influência. Mas aqueles agás eram decididamente contra mim, porque deixariam seguramente no espírito de qualquer leitor a ideia de que entre mim e a gramática existe um conflito insanável, o que, em boa verdade, não corresponde aos factos, tanto quanto me é dado julgar.
Quero eu dizer, para me explicar melhor: todos aqueles agás se tinham ardilosamente perfilado atrás da vogal «O» da palavra «ouve», que correspondia naquele caso ao imperativo do verbo que traduz o acto de sentir as vibrações do tímpano captadas pelo ouvido externo, e que descodifica os sons em vocabulário para ser lido pelo cérebro.
Como se compreende, o resultado foi o mais grosseiro que se pode imaginar - a percepção auditiva ficou confundida com o pretérito perfeito do acto de ter ou do facto de existir, o que, além de confundir o leitor, atribui inadmissível ignorância ao autor.
E as suspeitas sobre a intenção criminosa ou da rogação de uma praga avolumaram-se quando, tudo bem conferido, não havia dúvida de que um único daqueles extemporâneos agás não estivesse perfilado atrás daquela mesma palavra com a qual se pretendia representar um vício de linguagem de um personagem ali caricaturado através desse próprio tique de oralidade.
Tirei de cuidados e fui ver um amigo que tenho na Judiciária, na esperança de que me poderia ajudar a deslindar o mistério. Desenganou-me: colegas que percebessem de letras só os que lidavam com cheques carecas e letras protestadas e eu agradeci e saí melancólico, por entre máquinas de escrever e cabo-verdianos a serem ouvidos em auto que eram traduções literais do crioulo para português-de-às-folhas-tantas. Mesmo assim, recomendou-me que arranjasse um detective particular.
Fiquei cá fora, encostado a um balcão, saboreando uma cerveja à pressão e matutando em tudo isto. Detective particular para língua só um linguista e não me ocorreu de repente nenhum que desse explicações. Foi por isso que recorri ao velho revisor, já reformado, mas um sólido investigador apoiado numa experiente brigada de prontuários.
E como bom polícia da língua, que passou a vida a meter as letras no seu sítio, perguntou-me:
- E o móbil? Quem ganha com este crime?
- Quem quiser desacreditar o autor - respondi-lhe.
- Homem, não tens acordo que te valha.
Foi este desabafo que me lançou uma pista. Precipitei-me para a dominical página das crónicas e reli com atenção redobrada o meu companheiro lisboeta. E logo, nas suas primeiras linhas, lá estava, despudorada, a palavra «excrever», que como sabe se soletra «escrever».
Também ele era atingido por esta maldição do erro tipográfico, que só atinge oficiais deste ofício, sem prejuízo para qualquer explorador de arcas perdidas.
E então o mistério ficou deslindado.
Semanas atrás, o meu amigo Bastos lançou o mais belo e lancinante apelo a favor da língua portuguesa, desde que pharmácia passou a farmácia, ao escrever contra o malfadado acordo «não me tirem, o p de Baptista». Com esta mania da solidariedade e de alinhar com os velhos amigos, logo eu, pumba, noutro periódico, me atirei como gato ao bofe ao linguicídio anunciado.
É a nossa perdição. Daqui para a frente só nos espera o morticínio. Expliquei tudo isto ao meu amigo revisor. Disse que sim com a cabeça, fumando em silêncio, para concluir, subitamente:
- Já assisti a muitos casos como este.
Explicou-me, então, que a maldição dos burocratas da língua só é igual às maldições de todos os outros burocratas. Num caso como noutros, são eles, burocratas, quem se encarrega de nos pôr pimenta na língua.
- Então, eu... – tartamudeei.
- Tu estás lixado. Os agás mudos são uma gaita.
Lisboa, 1987
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NOTA (CMR) - Esta crónica vem no seguimento de uma outra, já aqui afixada, intitulada «O caçador de cabeças».

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1 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Um dia, em miúdo, deparei-me com um texto em grafia antiga (dos tais de 'pharmacia') onde, a certa altura, aparecia a frase
«Este peixe cheira a fénico!»
escrita assim:
«Este peixe cheira a phenico!»

Ora eu sabia que certos "agás" não se liam (como em 'HOUVE'), mas não sabia que o 'PH' se lia como 'F', pelo que me fez muita confusão haver peixes a cheirar a penico...

9 de maio de 2008 às 10:00  

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