13.5.08

Dificuldades para deficientes

Por Clara Ferreira Alves

BOAZ E SHIRLEY são dois cidadãos israelitas de férias em Lisboa. Como quase toda a gente que nos visita, gostaram muito da cidade e apreciaram cada momento que aqui passaram. As pessoas, os lugares, a paisagem, a comida. Recomendei-lhes que não perdessem o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), que é um dos museus mais extraordinários do mundo, rodeado daquele belo jardim e daquele rio azul, sentindo numa tarde de Primavera a brisa que sopra do Tejo e o cheiro das árvores e das flores. E, claro, recomendei-lhes os muitos sítios que quem mora numa cidade recomenda aos estrangeiros. E, claro, esqueci-me que Lisboa tem um problema, tem vários problemas. No que diz respeito a Boaz e Shirley, Lisboa vira-lhes as costas e nega-lhes oportunidades que concede a outros. Lisboa discrimina-os. Porquê? Boaz está numa cadeira de rodas.
Com mágoa, disse-me que não podia visitar o MNAA porque, como tantos museus e lugares públicos em Lisboa, não tinha facilidades para deficientes e cadeiras de rodas. A partir daqui, a lista continua. Foram a um lugar perto do castelo de São Jorge para ver arte, e não puderam entrar. O Bairro Alto é inegociável, e com o Bairro Alto vão na leva os restaurantes do bairro, incluindo um que lhes recomendei particularmente como sendo o da melhor comida portuguesa.

Lisboa (e o Porto, e outras cidades portuguesas) torna-se difícil, impossível, para velhos e aleijados. Apesar das fórmulas politicamente correctas com que cobrimos estes estados de vida, o da velhice e o da incapacidade, não cobrimos a cidade de "facilidades para deficientes" nem para incapacitados, seja pela idade, a doença ou o acidente. Há uns anos estive incapacitada durante alguns meses devido a uma ruptura de ligamentos num joelho e a uma operação. Com dificuldades em andar, carregando duas muletas, lembro-me de tentar atravessar a Avenida da Liberdade num dos semáforos sem conseguir. Sem asas nos pés, o tempo entre a luz verde e a vermelha para os peões é curtíssimo, e os carros parecem um bando de animais deitando fumo e escarvando no chão antes da investida. Muda o sinal e fica-se entalado a meio da Avenida entre dois sentidos, com as tangentes dos automóveis e os insultos dos automobilistas portugueses que, como toda a gente sabe, não são um modelo de cortesia. A primeira pessoa que me chamou a atenção para este problema foi a Helena Roseta, quando ainda não era (nem sabia que viria a ser) vereadora da Câmara Municipal. Espero que faça alguma coisa para modificar o estado das coisas.

A juntar ao domínio dos carros sobre as pessoas na cidade, temos as colinas e as calçadas portuguesas em altos e baixos, com pedras descalçadas, montinhos de brita, pilões de aço e carros estacionados, episódios vários de incúria e repressão que dificultam a passagem das pernas lentas e das cadeiras de rodas. Os velhos têm medo de atravessar as ruas, e têm pânico de cair. Junte-se ainda a inexistência de transportes especiais para deficientes, de táxis especiais para deficientes (que poderiam e deveriam existir) e de rampas e acessos nos edifícios e lugares públicos. A cadeira de rodas, em Portugal, e a deficiência, são uma condenação ao imobilismo, à solidão, ou ao internamento em instituições especiais. São também uma condenação à pobreza ou à pedincha quando se trata de gente sem recursos, ou incapacitada pelas centenas de acidentes de trabalho por falta de segurança, que as companhias seguradoras ignoram e tratam como dispensáveis, recompensando a perda das pernas ou dos braços, da visão ou da audição, ou de qualquer parte do corpo, com montantes irrisórios. A vida de um deficiente pobre vale muito pouco, se for um trabalhador imigrado estrangeiro vale nada. A família que cuide dele, é a racionalidade dominante. "Teve azar, coitado" é o comentário piedoso.

Londres, uma cidade muito maior e mais difícil do que Lisboa, pela extensão, tem rampas de acesso em todos os lugares, e todos os edifícios recém-construídos contemplam os acessos para deficientes. Na Tate Modern, o segundo Museu mais visitado do Mundo a seguir ao Louvre (e deixando para trás o MoMA e o Metropolitan em Nova Iorque e o Museu Britânico em Londres), está sempre cheia de deficientes que a visitam, cegos com visitas guiadas, inválidos e diminuídos.
E assim Boaz e Shirley regressaram a Telavive sem terem visto uma boa parte do que queriam e deviam ter visto. Nunca lhes poderei descrever os Painéis de Nuno Gonçalves ou os Biombos namban, a Custódia de Gil Vicente ou a tela de Bosch, a Capela das Albertas ou o pequeno Dürer, a esplanada e o jardim. A área em volta do castelo de São Jorge também ficou fora de jogo, e muitos outros lugares que só os sãos de corpo podem visitar. E o que me mais envergonha é que, antes deste episódio, eu mesma não sabia que o MNAA não acolhia deficientes. Nunca tinha pensado nisso. Que é, exactamente, o que os pátrios poderes fizeram. Nunca pensaram nisso.
NOTA: Telefonei para o MNAA várias vezes e ninguém atendeu o telefone. O "site", aparentemente incompleto, não deixa abrir o item "Contactos".
«Expresso» de 10 Mai 08 - c.a.a.; fotos CMR

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4 Comments:

Blogger R. da Cunha said...

E o Estado continua a primar por dar "bons" exemplos.

14 de maio de 2008 às 00:57  
Blogger p. said...

Experimente este email: mnaa.depcom@ipmuseus.pt. A mailing list é enviada através deste email.

15 de maio de 2008 às 09:46  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Pechisbeque,

Obrigado.

A sua informação foi reencaminhada para a autora da crónica (como, aliás, sucede sempre com os comentários feitos aos textos de autores convidados)

15 de maio de 2008 às 15:11  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

E ainda:

CFA agradece, e informa que, entretanto, já foi contactada pelo MNAA

15 de maio de 2008 às 18:25  

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