2.6.08

A farmácia do Rebocho

Por A M Galopim de Carvalho

NOS ANOS 40 DO SÉCULO QUE PASSOU, em Évora, a farmácia do Rebocho, à Porta Nova, era toda forrada de armários de madeira escura e de estilo, com portas de vidraça antiga e balcão a condizer. Sobre este havia um enorme pote de vidro, com água, cheio de sanguessugas, o que sempre me impressionou. Usavam-nas em certos tratamentos para chupar o sangue ruim do doente. Ficava que tempos a vê-las, encolhendo e esticando, sem cabeça nem rabo que se distinguissem, apoiando-se no vidro, ora com uma, ora com outra das suas extremidades em ventosa. Do lado de fora do balcão e, mesmo, na rua, ao lado da porta, lá estavam três ou quatro cadeiras de braços onde, no Verão, à tardinha, vinham sentar-se, para conversar e “ver passar”, um médico e mais dois ou três senhores importantes na cidade. Atrás do balcão numa velha secretária, também ela de estilo, o velho Rebocho, bacharel em farmácia, careca como um monge budista, virava do avesso, para tornarem a servir, envelopes usados da correspondência que recebia. Era o filho, o senhor Fernando, careca como o pai e que fazia o favor de ser muito meu amigo, que atendia os clientes e que, lá dentro, numa divisão a servir de laboratório, fazia hóstias de criogenina, supositórios de manteiga de cacau, xaropes e pacotinhos de bicarbonato de sódio, então muito usados nas azias de cada um. Medicamentos embalados vindos dos laboratórios, como hoje acontece, eram raros. O médico passava a receita, o que significava escrever no papel timbrado com o seu nome as designações e as quantidades dos produtos com os quais o farmacêutico manipulava o remédio. Com armários forrando as paredes, do chão ao tecto, esta divisão era um armazém de líquidos, pós brancos e corados, granulados, ervas secas, pomadas, tudo guardado em frascos e caixas, produtos com os quais se prepararam os medicamentos da minha infância.
.. Frascos, provetas graduadas e funis, para os remédios de beber; pedra de mármore branca, lisa de tanto uso, e espátula de corno, fina e flexível, para misturar pomadas; balança de precisão com lindos pesos de latão, dos maiores aos pequeníssimos nos quais só se mexia com pinça; caixas e caixinhas dos meus encantos, tubos e papelinhos..., era este o mundo do senhor Fernando durante a semana. Nos Domingos e feriados, era caçador!
.. Tejo era o nome do perdigueiro amarelo e grande que, preguiçando toda a semana no assoalhado da farmácia, esticava os músculos nos dias de folga do dono, atrás de coelhos e perdizes. Por ele ser grande e por eu ser pequeno, escarranchava-me constantemente nos lombos do Tejo, fazendo dele cavalo para me sentir cavaleiro.
.. – Tira-te de cima do cão! – ralhava o dono – Não vês que lhe dás cabo das cruzes?
.. Claro que eu saltava logo para o chão. O Tejo não se importava com aquela promoção a cavalo e acho que até gostava da brincadeira que, naturalmente, eu repetia sempre que o senhor Fernando andasse por longe.
Lisboa, 30 de Maio de 2008 - texto retirado de ”FORA DE PORTAS Memórias e Reflexões”, Âncora Editora, 2008; as crónicas que o autor aqui afixa estão também disponíveis no seu blogue-arquivo Sopa de Pedras.

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