9.6.08

O QUÊ?

Por A. M. Galopim de Carvalho
DEIXANDO DE FORA o caso das pessoas com surdez total, com problemas e modos de comunicação próprios, restrinjo-me, nestas considerações, às pessoas com maior ou menor dificuldade de audição. Estas deparam-se, diariamente, com barreiras que as impedem de abarcar, parcial ou totalmente, o mundo à sua volta. Basta-lhes perder uma palavra de uma frase falada para que esta deixe de fazer sentido e ei-los, por momentos, perdidos, na tentativa de a descobrir, o que nem sempre conseguem. Outras vezes, o que é mais grave, aquilo que julgam ouvir não corresponde ao que foi dito, podendo mesmo ser, precisamente, o contrário.
.. Com o tempo, o deficiente auditivo evita ou hesita pedir ao seu interlocutor a repetição do que não conseguiu entender, sobretudo, porque julga e, muitas vezes, sente que isso o incomoda e ei-lo, novamente, a tentar compor o discurso a partir dos fragmentos que vai conseguindo perceber.
.. Quando em grupo, a pessoa portadora desta deficiência acaba, quase sempre, por se desinteressar das conversas em seu redor. Umas vezes finge dar-lhes atenção, numa atitude de boa educação e respeito para com quem esteja a falar, guiando-se pelas reacções dos presentes, imitando-lhes, automaticamente, as expressões faciais, dizendo que “sim” ou que “não”, com a cabeça, ou sorrindo sem saber de quê. Outras vezes, vira-se para dentro de si ou entretém-se a observar os mais ínfimos pormenores de tudo o que o rodeia. Acaba sempre por ficar isolado no seio de uma animação que lhe está vedada. Outra vezes, ainda, e se o puder fazer, afasta-se e, ou encontra alguém com quem possa falar a dois, frente a frente e fora do ruído de fundo, ou arranja um qualquer pretexto e despede-se.
.. Deixando aos especialistas a tarefa de explicar as consequências psicológicas deste e de outros tipos de situações, este é o relato do aspecto que me parece ser mais comum na vida de relação dos deficientes auditivos com os outros... Devo acentuar que esta condição nos exercita as capacidades de observação, de interiorização, de reflexão, de apelo à memória e, ainda, nos ensina a viver connosco próprios, o que de certa maneira compensa a deficiência que nos atinge. Sendo a escrita um acto solitário, julgo ter encontrado, nesta minha dureza de ouvido, total disponibilidade para a exercitar. Acho que foi, julgo, o que me aconteceu.
Esta e outras crónicas do autor estão também no blogue-arquivo Sopas de Pedra.

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1 Comments:

Blogger Buriti said...

Obrigado, professor, pela excelente caracterização que faz da "dureza de ouvido". Evidentemente que só a experiência dessa situação serve para exprimi-la. E eu sei que assim é, porque também a sinto, apesar destas geringonças tecnológicas que hoje nos ajudam. Seria bom que, apesar de tudo, os outros também a entendessem, sobretudo neste país que, contrariamente ao que é dito, não tendo "ouvido duro", pouco ouve.

10 de junho de 2008 às 18:13  

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