25.6.08

Para que serve a língua portuguesa

Por Alice Vieira
TINHAM SIDO DIAS COMPLICADOS, febres descontroladas e sem razão aparente, ora muito altas, ora muito baixas, e o braço a inchar, e a doer horrivelmente, assim como se a carne fosse rebentar da pele - mas eu odeio hospitais, e fui tentando tudo (incluindo aquelas mezinhas que a gente já sabe que não resolvem rigorosamente nada mas que dão um grande consolo à alma - e se a alma precisava de ser consolada, meu Deus!) para ver se a coisa se resolvia a nível caseiro.
Até que lá tive de me render às evidências e entrar naquele ambiente terrível de uma sala de espera das urgências de um hospital — que, como toda a gente sabe, é o melhor lugar para se apanhar todas as doenças, para além daquela que a gente já leva de casa.
Lá fico encolhida no meu canto, à espera de vez, quando de repente alguém vem ter comigo, “caramba, há que anos não te via!,”e dou de caras com um amigo de que há muito tinha perdido o rasto.
Nem sequer era daqueles amigos muito íntimos mas, naquela altura, soube-me a aparição salvadora.
Por nada de especial, apenas porque eu estava sozinha naquela madrugada, e precisava urgentemente de companhia, e podíamos conversar e ser gente, e não apenas uma senha ou um número.
Ele vai buscar-me um café a uma daquelas máquinas de produzir mistelas a que depois, sabe-se lá porquê, dão esse nome, e diz:
“Conta-me tudo”.
Sorrio, porque me lembro dos primeiros versos de um belíssimo poema do meu amigo Tolentino Mendonça (“paga-me um café/e conto-te a minha vida”), e falei, falei, porque precisava mesmo de falar e porque assim o tempo não custava tanto a passar e até as dores parecia terem abrandado.
É então que a empregada do guichet fixa em mim os seus olhos, abre a boca de espanto e de repente exclama, no seu açucarado sotaque brasileiro:
“Pôxa, como ‘cê fala bem!”
É a minha vez de fazer um olhar espantado, mas já ela continua:
“Se eu ‘tivesse aflita qui nem você, da minha boca, ó, só saía era palavrão mesmo!”
Garanto que, nestes últimos e complicados dias, foi a primeira vez que dei comigo a rir.
E ainda ri mais quando o médico apareceu à entrada da porta e ela gritou:
“Dótor, leve aí a moça pra vê como ela fala bonitinho!”
Foi também a primeira vez na minha vida que o uso mais ou menos escorreito da língua portuguesa funcionou, desavergonhadamente, como cunha.
«JN» de 22 de Junho de 2008

Etiquetas:

4 Comments:

Blogger Blondewithaphd said...

Ainda estou a beber as palavras...

25 de junho de 2008 às 11:30  
Blogger Antunes Ferreira said...

Deslumbrado, absolutamente deslumbrado. Como sempre.
Querida Alicinha, oxalá estejas melhor. Quero dizer, bem; excelente; óptima. Aliás, ótima. Ai esta língua portuguesa. Como tu fala bonitinho!

25 de junho de 2008 às 12:25  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Já que aqui se fala de Língua portuguesa, aqui fica um protesto/apelo que acabei de receber:
_____________


E a praga continua !
To: provedor.ouvinte@rtp.pt

A asneira ouve-se em todas as rádios, incluindo a Rádio Pública:

"Vamos conferir o trânsito", "conferir o tempo", "conferir a actualidade", "conferir a Bolsa"...! Todos o dias, a todas as horas.
Uma gangrena peçonhenta que já em 2005 tinha ficado diagnosticada no Ciberdúvidas. Sem qualquer resultado prático.

http://ciberduvidas.sapo.pt/pergunta.php?id=15806

Um (pequeno) grupo de exasperados ouvintes pede:

Reenviem esta mensagem às rádios, incluindo o Provedor da RDP.

25 de junho de 2008 às 13:40  
Anonymous Anónimo said...

Fantástico!
Adoro ler os seus post´s.
Espero que já esteja bem!
Cumprimentos

26 de junho de 2008 às 00:35  

Enviar um comentário

<< Home