19.8.08

Callas em Agosto

Por Alice Vieira
ERA UM DIA DAQUELES em que o mundo está longe, em que nada nos parece afectar, em que aguentamos silêncios e abandonos, em que esquecemos salas de espera do hospital e horas do antibiótico.
Em que precisamos apenas de quem também precisa de nós.
Em que descobrimos que nos damos muito bem connosco, e que Lisboa em Agosto é o que mais se assemelha ao paraíso — e se for numa esplanada com o Tejo ao fundo, é quase o nirvana.
Um velho amigo tinha combinado um almoço, a conversa decorreu até quase às quatro da tarde, e aí ele lembrou-se de uma coisa que tinha de escrever e lá foi, e eu andei a pé, a embebedar-me de sol e rio até que dei comigo diante do Museu da Electricidade, com a exposição da Maria Callas anunciada em grandes painéis.
Entro, e por lá ando no escuro dos corredores, com a sua voz a acompanhar-me, a Callas desde os seus tempos de menina, as fotografias, as cartas (“Battista mio, sono felice”, escreve em Novembro de 47 ao Sr. Meneghini, com quem viria a casar dois anos depois), as ofertas, os vestidos, os recortes da imprensa, os programas, os contratos, os telegramas — até que desemboco numa sala dedicada à sua passagem por Lisboa, em Março de 58.
Sento-me - e de repente acabei de fazer 15 anos e estou à porta do Hotel Avis. Chove, faz vento, e eu tento convencer o porteiro a deixar-me ficar lá dentro até que ela chegue, e eu a veja e lhe estenda o meu livro de autógrafos.
Vou ouvi-la no dia seguinte ao São Carlos.
Mas o porteiro está habituado a lidar com celebridades. Sorri e diz-me que o mais certo é ela chegar tarde, maldisposta, a odiar a humanidade, e a querer que a deixem em paz.
Insisto.
Ele diz que, por ele, até nem vê problema mas, acrescenta, “se fosse à menina, eu ia recordá-la apenas por aquilo que vai ver amanhã no palco. A Maria Callas é isso — e não esta cliente do nosso hotel.”
Ainda hoje me lembro desta conversa — e por ela lhe fiquei sempre grata. E sobretudo pelo remate: “a menina deixe cá ficar o seu livro, e um dia destes venha buscá-lo. Eu consigo que ela o assine.”
Conseguiu.
E na verdade o que me ficou na memória foi a maravilha daquela “Traviata”, a primeira que eu ouvi, a música, os fatos, os cenários, o perfume da sala - e as palmas, aquelas palmas que pareciam não acabar nunca (há quem jure que houve 42 chamadas ao palco).
E que, nas minhas mãos, duram até hoje.
«JN» de 17 de Agosto de 2008

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3 Comments:

Blogger Luis Eustáquio Soares said...

Salve, caro amigo, que sua presença em meu blogue me deixou muito feliz, por sua fome de novos atos nascentes, por seu desejo de extensão, de dilatar a linha do horizonte, com afetos que nos afetam: cooperar, escrever coletivamente, compartilhar textos e sonhos, aproximar distâncias e, por conseqüência, abrasileirar o português e "aportusegar" a brasileira fala.
Fiquei bastante animado com seus projetos e quero sim adquirir seu livro. Começo fazendo uma proposta: vamos publicar uma antologia de poetas bloqueiros portugueses e brasileiros, usando as nossas duas embaixadas?
meu cordial e amigo abraço,
luis eustáquio

20 de agosto de 2008 às 00:56  
Blogger Chinha said...

Realmente muito se disse e escreveu sobre esta diva dos palcos.
Em tempos li um livro em que se descrevia toda aquele periodo dela com o armador Onassis.
Mas realmente ouvi-la era algo de sublime.
É sempre bom recordá-la, por isso me perdi aqui no seu texto.

bjinho

20 de agosto de 2008 às 01:34  
Blogger Menina Marota said...

Este texto cheio de sensibilidade faz-me recordar a tristeza que é recordarmos a degradação de qualquer ser humano... guardar memórias felizes no nosso interior é bem mais fácil que guardarmos as que nos tocaram pelo lado negativo.

Recordar Callas é ouvir todo o potencial que a sua voz e expressão dramática nos deixou no seu grande património musical.

Um abraço

20 de agosto de 2008 às 09:07  

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