Os dois Saramagos que conheci
Por Carlos Pinto Coelho
FOI A TARDE em que todos os demónios invadiram o meu Diário de Notícias. Pelos corredores fervilhavam inquietações e boatos. O senhor Raimundo, o mais antigo contínuo da Redacção do jornal, vem dizer-me que sou chamado ao gabinete do director. Meia hora depois tomo conhecimento de que estou despedido (ou “saneado” como então se dizia). Exactamente um ano depois da alegria dos cravos.
Na vetusta “sala verde”, onde Augusto de Castro vivera as suas gloriosas décadas de director do Diário de Notícias, estava agora José Saramago à secretária, rodeado de gente. Era ele o recém-chegado director-adjunto do jornal, designado pelo Partido Comunista para conduzir o Diário de Notícias pelos caminhos da revolução, general com poder para movimentar o que houvesse que movimentar. Mas não foi ele quem me recebeu, antes um jornalista chamado Luís de Barros, militante que o Partido designara director do jornal. De modo que foi Barros quem me transmitiu, de forma atabalhoada, a sentença ditada por Saramago. Não soube do que era acusado, nem ouvi menção a faltas, crimes ou desvarios, ideológicos ou outros. Soube apenas que estava na rua (“saneado”) e ponto final. (...)
Texto integral [aqui]
FOI A TARDE em que todos os demónios invadiram o meu Diário de Notícias. Pelos corredores fervilhavam inquietações e boatos. O senhor Raimundo, o mais antigo contínuo da Redacção do jornal, vem dizer-me que sou chamado ao gabinete do director. Meia hora depois tomo conhecimento de que estou despedido (ou “saneado” como então se dizia). Exactamente um ano depois da alegria dos cravos.
Na vetusta “sala verde”, onde Augusto de Castro vivera as suas gloriosas décadas de director do Diário de Notícias, estava agora José Saramago à secretária, rodeado de gente. Era ele o recém-chegado director-adjunto do jornal, designado pelo Partido Comunista para conduzir o Diário de Notícias pelos caminhos da revolução, general com poder para movimentar o que houvesse que movimentar. Mas não foi ele quem me recebeu, antes um jornalista chamado Luís de Barros, militante que o Partido designara director do jornal. De modo que foi Barros quem me transmitiu, de forma atabalhoada, a sentença ditada por Saramago. Não soube do que era acusado, nem ouvi menção a faltas, crimes ou desvarios, ideológicos ou outros. Soube apenas que estava na rua (“saneado”) e ponto final. (...)
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9 Comments:
Muitos escritores, como aliás, os artistas em geral, isolam-se no seu egoísmo e no seu ego, julgam-se seres superiores e talvez o sejam. Depois brindam-nos com as suas criações, não como dádivas generosas para compensar os maus fígados nem para o bem da Humanidade, mas à espera de adoração e reconhecimento. Perseguem a glória e a imortalidade e os bons conseguem-no.
Mas felizmente nem todos os grandes escritores tiveram ou têm esta postura na vida, muitos são ou foram tão bons na obra como nas suas vidas.
Não me parece que tenha sido o caso de Saramago.
Alguém refere (a menos que seja como curiosidade) que Newton era intratável, que Fermat (como juiz) decerto enviou muita gente para a fogueira ou que Mozart (pelo menos em jovem)adorava assistir a enforcamentos?
O que sucede é que, muitas vezes, separar a OBRA da PESSOA só se consegue com o tempo.
Sendo Saramago uma pessoa muito comprometida ideologicamente, é natural que os seus contemporâneos valorizem demasiado o aspecto pessoal (político, religioso, etc) em detrimento da sua obra literária.
Como digo, será o tempo a resolver esse conflito - quando exista.
Até concordo com o Carlos. O tempo o dirá... e a história não se debruçará sobre o carácter, o temperamento do homem, mas sim sobre a sua obra embora não se possa desassociar completamente uma coisa da outra, obviamente. Mas os seus contemporâneos que o conheceram de perto ou de longe, que leram ou ouviram as suas ideias, as suas opiniões, os seus comentários provocadores e polémicos, desrespeitosos até, cujos percursos profissionais foram interrompidos ou desviados (como o que lemos nesta crónica), esses nem o tempo lhes apagará da memória o seu descontentamento. A sua obra (da qual não sou apreciadora, embora perante tudo o que se escreveu sobre este escritor me induza a tentar de novo, já numa faixa etária diferente), perdurará por muito tempo. Quanto? Ninguém sabe. Uma geração, duas ... Poderá acontecer, perfeitamente, que chegue a uma altura em que se considere que José Saramago teve a sua época e outros escritores ocuparão esse espaço...
Nos nossos (eu + amigos, claro) 18, 19, vinte anos líamos Sartre (num dos comentários de um blogue li que quem leu ou lê Sartre é analfabeto – talvez seja o meu caso, quem sabe!), Carl Jung, Somerset Maugham, Alberto Moravia, Albert Camus, John Steinbeck, Alexandre Soljenitsyne, só para mencionar uns quantos. Os jovens de hoje pegam nalgum livro de um destes autores? Os que eu conheço não. E se o conteúdo curricular não for actualizado, não forem adaptados métodos pedagógicos coerentes e inovadores (nada de facilitismos) e se não se concretizarem outras intervenções responsáveis na àrea da educação, não creio que o intelecto seja desenvolvido ao ponto deste tipo de leituras se tornar aliciante. Outros autores, outras ideologias lhes despertarão o interesse.. esperemos! Desde que continuem a ler... o resto virá por arrasto suponho.
Catarina,
Pois... E quando alguém contacta, pela 1ª vez, com um escritor, também é muito importante o livro que escolhe.
Veja-se Graham Greene, p. ex.:
Eu julgo que começar por «O Nosso Agente em Havana» ou por «A Inocência e o Pecado» (ou «O Poder e a Glória») dão resultados completamente diferentes em termos de despertar o interesse pelo resto da obra.
Concordo com tudo o que o Sr. Carlos disse e até não duvido que o Mozart assistisse a enforcamentos, mas não creio que adorasse fazê-lo.
A ser verdade, acredito que o tivesse feito com um espírito meramente esotérico. A fragilidade da vida, o último suspiro do condenado pela Lei dos homens e não pela Lei da Natureza.
Segundo li, Mozart foi filantropo, homem muito dedicado ao exoterismo e membro da Arte Real, para a qual, aliás, escreveu inúmeras peças, incluindo a famosa Flauta Mágica.
Mas a vida é uma viagem e às vezes os caminhos obscuros fazem parte do seu percurso, o que é preciso é não se deter por lá. Acho que Mozart não se ficou por aí.
Faz lembrar o caminho percorrido pelo Sidharta de Hermann Hesse.
A referência a Mozart (excerto de um bilhete dele para a irmã, quando tinha 15 anos) é feita, em nota, no livro de Simon Leys «Os Náufragos do Batávia», a propósito do facto de os insurrectos terem sido enforcados pelo 'método antigo'.
Afixei a página e o recorte [aqui].
Obrigado pela nota.
Bem, conseguir ver enforcamentos aos quinze anos é mais uma prova da sua maturidade precoce.
Ribas,
Aos 15 anos eram os enforcamentos em Milão.
A 'nota' refere que, 5 anos antes disso, ele já os apreciava em Lyon!
:))
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