As ruas como reivindicação
Em que estádio civilizacional nos encontramos? O Correio da Manhã de anteontem contava que 8238 velhos estão abandonados nos hospitais, por carências económicas das famílias, por negligência moral, por dispositivo indigno do mundo em que vivemos. Este dispositivo indigno possui raízes no sistema, cada vez mais corrupto e, acentuadamente, propício ao desprezo pelo outro, seja ou não familiar. Diariamente somos assustados pelas novas condições que o Governo aplica aos mais pobres e indefesos. E, pelos vistos e ouvido, a procissão ainda vai no adro.
É preciso, urgentemente, saber em que sítio estamos e em que estrada caminhamos para conhecermos a norma que domina e qual o código a respeitar. O direito à desobediência não é uma metáfora. Representa um direito que nos assiste, como afirmação de protesto cívico e manifestação de dignidade humana.
Nenhuma lei, quando injusta ou perversa, é um registo de obediências cegas. E os cidadãos, exactamente porque o são, constituem a afirmação de uma alternativa. Naturalmente (uso o advérbio na sua exacta dimensão) o mundo mudou e as nações alteraram o carácter próprio e as circunstâncias da sua acção, pouco importando a história de cada uma delas. O domínio do capital eufemizou-se com termos mansos: globalização e mercado. O totalitarismo que os envolve e a arbitrariedade a que estão associados rejeitam a alteridade e ameaçam a democracia. As regras impessoais que nos estão a impor implicam a aplicação de sanções violentíssimas a quem desobedeça. Um pouco por todo o lado assistimos a esses lances.
O desprezo pelos velhos constitui um grau suplementar da complexidade do sistema político-económico vigente - mas não ainda vitorioso. É impossível regressar ao mundo simplificado de outrora. Mas é possível enfrentar a barbaridade e favorecer a emergência do "eu" humanista. As manifestações, violentas ou pacíficas, que se verificam em vários pontos do planeta são sinais representativos da lógica de mudança - e de reacção. Sempre assim foi. As ruas dispõem de uma autoridade reivindicativa de que a História tem feito prova.
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3 Comments:
Como já aqui foi referido, Aquilino Ribeiro, em «Arcas Encoiradas», narra várias situações em que os velhos eram mortos ou deixados morrer.
Tratava-se de algo comum, entre os lusitanos, os esquimós... e até em Portugal, ainda no início do séc. XX, nas serras da Peneda, Cabreira, Estrela, da Nave, de Montemuro, do Marão, etc.
Um dos «Contos da Montanha», de Torga, é acerca do "abafador", o homem (profissional!) que as famílias chamavam para matar, por asfixia, os velhos à beira da morte.
...e na velha Esparta.
Creio que aqui há duas vertentes distintas: uma, a dos carenciados, que não têm solução individual para o problema dos idosos/doentes; outra, a dos egoístas, com o inerente desprezo de quem já nada tem a dar e só atrapalha. "Enciclopédia" é coisa que ignoram o que seja e que só deve ocupar espaço inutilmente.
Os celtas tinham razão. Com os discos rígidos já temos bibliotecas que cheguem.
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