3.11.11

Estritamente confidencial

Por Rui Tavares

HÁ UMA SEMANA, tive o cuidado de voltar à minha mesa para recolher um maço de folhas esquecido que tinha a menção, em letras garrafais, de “ESTRITAMENTE CONFIDENCIAL”.

Não precisava de me ter preocupado. Na mesa ao lado, uma colega tinha deixado para trás o mesmo documento. Duas mesas abaixo, lá estava outro exemplar. Olhando em volta, o mesmo documento secreto pipocava aqui e ali. À entrada de uma reunião, assistentes tinham distribuído dezenas deles. E isto aconteceu apenas depois do documento ter aparecido em milhares de blogues e em tudo o que era jornal do mundo.

Esse documento era a avaliação do plano de resgate da Grécia feito pela própria troica. Aparentemente, precisava de ser estritamente confidencial por dizer aquilo que toda a gente já sabia: não está a funcionar. Não que a troica o admita. Mas os dados são claros: o plano de austeridade para a Grécia não funciona porque a austeridade não deixa a Grécia cumprir o plano.

O erro não está na Grécia. O erro está no plano. O documento ultra-hiper-mega-secreto que andava espalhado por todo o lado possui até uma utilidade extra. A continuar tudo da mesma forma, é o relatório “estritamente confidencial” que há de ser escrito sobre Portugal daqui a um ano.

No mesmo dia, os líderes europeus (ou talvez tenha sido apenas, como agora se diz, o Merkozy) decidiram engendrar um zigurate tóxico para acabar com a crise.

A lembrar, um zigurate era aquela espécie de feia pirâmide que se fazia na antiga Mesopotâmia. Tinha uma primeira base ampla e sólida, mas depois ia subindo em socalcos cada vez mais altos e estreitos. À parte dar aos imperadores a satisfação de estarem “a fazer qualquer coisa”, a utilidade da construção é negligenciável.

Isto mesmo se aplica à invenção de Merkozy, uma alavancagem do Fundo Especial de Estabilização Financeira que será feita (um dia) com dinheiro chinês. Mas este não é um zigurate qualquer. Será o maior produto tóxico do mundo, uma espécie de apogeu do subprime.

O senhor Van Rompuy respondeu à imprensa perguntando: “se os bancos sempre fizeram isto, por que não nós?” — ao que acrescentou o senhor Sarkozy: “se os chineses quiserem investir no euro, qual é o mal?”

(Calharia aqui a propósito uma história. Umas décadas antes de os portugueses chegarem a Índia, os chineses tinham barcos várias vezes maiores com os quais chegaram a Moçambique. Mais uns anos e a história do mundo teria sido muito diferente, com o comandante Cheng He a entrar na barra do Tejo e desembarcar em Lisboa. Isso não aconteceu porque um imperador morreu e o imperador seguinte decidiu parar com as navegações marítimas. E a ordem foi cumprida de um momento para o outro porque, caro senhor Sarkozy, na China antiquíssima e séria as coisas fazem-se — mas também se interrompem — assim.)

Continua a ser impressionante como esta gente faz tudo para evitar que um problema europeu tenha uma solução europeia. O remendo — perdão, a “solução abrangente” — que inventaram desta vez não durou sequer uma semana. De novo vão culpar os gregos e o anúncio de referendo naquele país. Mas já antes disso os juros italianos tinham subido para máximos incomportáveis. O problema não está na Grécia, nem sequer na Itália: o problema está no plano.

Porquê? Posso dizer-vos, mas é estritamente confidencial: esta gente não sabe o que anda a fazer.
«RuiTavares.Net»

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