10.1.12

O Desacordo Ortográfico

Por Maria Filomena Mónica

O MELHOR é apresentar-me. Chamo-me Alicinha e tenho doze anos. No ano passado, o meu pai trocou a minha escola por outra, mas eu tenho saudades da Bartolomeu de Gusmão, na Rua da Bela Vista, à Lapa, onde as setoras eram bué porreiras e as minhas amigas super. Usando um dos sprays que o irmão tinha escondido, a Guidinha, a mais afoita, escreveu na parede exterior da escola «pedagojia cotodiano», uma frase que ainda lá está. Sei-o, porque, quando vou para a nova escola, passo por lá. A mensagem é tão baril que as professoras ainda a não apagaram.

Este Natal o Menino Jesus e o St Claus – que é como, lá em casa, chamam ao Pai Natal – deram-me um presente. Segundo o meu pai, que viveu muitos anos em Inglaterra, vamos poder dar erros, mas apenas nas redacções de Português, porque nas de Inglês não será permitido, uma vez que lá não gostam de facilitar a vida às criancinhas. Deve ser por isso que ele ficou com um apelido esquisito: Sttau, que raça de nome é este?

Os governantes portugueses mudaram a forma de escrever a fim de nos tornarmos o país mais forte do mundo. Nem todas as setoras concordam, mas vão ser obrigadas a usar o que chamam Acordo Ortográfico. O meu pai, que embirra com tudo, diz que o Inglês tem 18 versões (é verdade, porque fui ver ao computador) e que nem por isso aquela língua decaiu. Mas, como toda a gente sabe, ele é um preguiçoso. Anteontem, na televisão ouvi um senhor chamado Malaca Casteleiro afirmando que temos de fazer «um esforço de adaptação».

Por isso já fiz uma redacção, usando a nova ortografia, a dizer o que penso dos omens – o h é mudo, por isso sai, não é? – diçertando sobre a perceção que o mundo tem do sexo forte. A receção por parte das minhas amigas foi idiota. Afirmam que, um dia, terei de aturar um deles, por isso devia era estar calada, mas eu sei como dar uma volta à kestão: vou escolher um velho, porque estes morrem mais depressa. Foi o que a minha bisavó fez – ela escreve phosphoro em fez de fósforo – e, pelo que vejo, tem-se dado bem com o estatuto de viúva.

Ando radiosa, após a determinação do Conselho de Ministros, de 9 de Dezembro, no sentido do sistema educativo e de toda a papelada oficial ter de adotar (aqui deixo cair a consoante muda, não é?) o Vocabulário que resultou da luta entre a Academia das Ciências e a Porto Editora. Quem me dera ser accionista desta empresa, mas, sempre avara, a minha mãe não me deixa. Por seu lado, o meu avô anda tão furioso que, lá do Céu, onde é Embaixador, me proibiu de usar o novo sistema. É um querido, mas devia ter em consideração que a desobediência civil é mais fácil para quem está no Altíssimo do que neste Vale de Lágrimas. Embora o meu pai me tenha dito que o método caiu em desuso após uma bernarda que por cá se fez com cravos, não quero apanhar reguadas. Aliás, aquela Revolução teve lugar antes de eu nascer e por isso não me interessa. Vou é pedir ao Malaca Casteleiro apoio para a criação de um Movimento de Libertação das Crianças.
«Expresso» de 7 Jan 12

Etiquetas:

2 Comments:

Blogger R. da Cunha said...

A Alcininha será "bisneta" do Sttau e "neta" da Guidinha?
Como escreveria a Guidinha as suas redacções (ou redações?, hoje?

10 de janeiro de 2012 às 18:13  
Blogger José Batista said...

Agora vejam, meus amigos, as agruras de um humilde professor do ensino secundário que está obrigado a escrever segundo o "aborto ortográfico"!
Dizem alguns (para se contentarem?) que é tudo uma questão de adaptação. Eu sinto-o mais como um problema de abastardamento.
E problemas, já tínhamos tantos...

10 de janeiro de 2012 às 22:47  

Enviar um comentário

<< Home