5.6.12

A náusea

Por Rui Tavares

NA TURQUIA a sociedade toda — a civil, a militar, e os curdos — vive obcecada com a existência de uma coisa a que chamam de “o estado profundo”. O “estado profundo” consiste nas fundas raízes que os serviços secretos, polícias e exército, mancomunados com elementos dos negócios e da política, sem esquecer, é claro, um sistema judicial moroso e manipulável, lançam até até aos alicerces de toda a vida nacional.
Em Portugal talvez não haja “estado profundo”. Mas vamos sabendo que existe o “estado superficial”. É uma espécie de babugem na qual fermentam criaturas sem conhecimento mas com “conhecimentos”, sem cultura política mas com cunhas metidas por políticos, com um percurso feito entre lojas maçónicas manhosas e carreiras nas juventudes partidárias, e trocando empregos arranjados por políticos em setores às vezes nevrálgicos do estado por favores de umas empresas que por sua vez arranjam emprego a políticos quando estes não foram escolhidos para as listas de deputados.
Lendo sobre o “caso Relvas” na imprensa vejo uma referência que me perturba. Como é sabido, o ministro omitiu a existência de uma reunião com o ex-espião Jorge Silva Carvalho quando este estava já na Ongoing. O que me chama a curiosidade é a empresa que Miguel Relvas, a cerca de um mês de entrar no governo, representava como o administrador. Trata-se de uma tal de Finertec. Que faz a Finertec? Como boa parte das empresas neste mundo novo, não se consegue perceber: faz, pelos vistos, negócios.
O que é a Finertec? Informa-me a revista “Visão” que: “A Finertec é uma sociedade anónima, detida a 100% pelo Banco Fiduciário Internacional (BFI), sediado em Cabo Verde. Este banco é, por sua vez, uma entidade quase desconhecida (aparentemente detida por capitais angolanos).”
Qualquer semelhança entre este obscuro Banco Fiduciário Internacional e o célebre Banco Insular usado nas falcatruas do Banco Português de Negócios é capaz de não ser mera coincidência. Segundo a mesma revista, os nomes de ambos os pseudo-bancos cabo-verdianos apareceram ligados no julgamento do “caso BPN” como servindo de veículos aos “empresários angolanos que queriam meter dinheiro fora de Angola”.
E ao ler estas frases sou tomado por uma náusea. É então isto que um político de carreira como Miguel Relvas, várias vezes deputado da nação e agora segundo-ministro do Governo, faz enquanto espera que a roda da sorte das maquinações partidárias não o favorece? Aceitar ser administrador de uma empresa que não se sabe exatamente o que faz, detida por um banco que parece só existir no papel, detido por não se sabe muito bem quem?
Esta náusea deve ser muito semelhante ao que sentiram os turcos quando começaram a descobrir o seu “estado profundo”: é a noção intimamente sentida que este exemplos que nos são dados a entrever devem estar metastizados pelo nosso corpo político “de governo”. O medo quase realizado de que nada os impede de estarem já alastrados.
A diferença entre o “estado profundo” turco e o “estado superficial” português está, pois, apenas em saber quanto alastrou a doença. É que, como nas árvores, ela pode atacar a democracia tanto pelas folhas como pelas raízes.
In RuiTavares.Net

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