A náusea
Por Rui Tavares
NA TURQUIA a sociedade toda — a civil, a militar, e os curdos —
vive obcecada com a existência de uma coisa a que chamam de “o estado
profundo”. O “estado profundo” consiste nas fundas raízes que os
serviços secretos, polícias e exército, mancomunados com elementos dos
negócios e da política, sem esquecer, é claro, um sistema judicial
moroso e manipulável, lançam até até aos alicerces de toda a vida
nacional.
Em Portugal talvez não haja “estado profundo”. Mas vamos sabendo que existe o “estado superficial”.
É uma espécie de babugem na qual fermentam criaturas sem conhecimento
mas com “conhecimentos”, sem cultura política mas com cunhas metidas por
políticos, com um percurso feito entre lojas maçónicas manhosas e
carreiras nas juventudes partidárias, e trocando empregos arranjados por
políticos em setores às vezes nevrálgicos do estado por favores de umas
empresas que por sua vez arranjam emprego a políticos quando estes não
foram escolhidos para as listas de deputados.
Lendo sobre o “caso Relvas” na imprensa vejo uma referência que me
perturba. Como é sabido, o ministro omitiu a existência de uma reunião
com o ex-espião Jorge Silva Carvalho quando este estava já na Ongoing. O
que me chama a curiosidade é a empresa que Miguel Relvas, a cerca de um
mês de entrar no governo, representava como o administrador. Trata-se
de uma tal de Finertec. Que faz a Finertec? Como boa parte das empresas
neste mundo novo, não se consegue perceber: faz, pelos vistos, negócios.
O que é a Finertec? Informa-me a revista “Visão” que: “A Finertec é
uma sociedade anónima, detida a 100% pelo Banco Fiduciário Internacional
(BFI), sediado em Cabo Verde. Este banco é, por sua vez, uma entidade
quase desconhecida (aparentemente detida por capitais angolanos).”
Qualquer semelhança entre este obscuro Banco Fiduciário Internacional
e o célebre Banco Insular usado nas falcatruas do Banco Português de
Negócios é capaz de não ser mera coincidência. Segundo a mesma revista,
os nomes de ambos os pseudo-bancos cabo-verdianos apareceram ligados no
julgamento do “caso BPN” como servindo de veículos aos “empresários
angolanos que queriam meter dinheiro fora de Angola”.
E ao ler estas frases sou tomado por uma náusea. É então isto que um
político de carreira como Miguel Relvas, várias vezes deputado da nação e
agora segundo-ministro do Governo, faz enquanto espera que a roda da
sorte das maquinações partidárias não o favorece? Aceitar ser
administrador de uma empresa que não se sabe exatamente o que faz,
detida por um banco que parece só existir no papel, detido por não se
sabe muito bem quem?
Esta náusea deve ser muito semelhante ao que sentiram os turcos
quando começaram a descobrir o seu “estado profundo”: é a noção
intimamente sentida que este exemplos que nos são dados a entrever devem
estar metastizados pelo nosso corpo político “de governo”. O medo quase
realizado de que nada os impede de estarem já alastrados.
A diferença entre o “estado profundo” turco e o “estado superficial”
português está, pois, apenas em saber quanto alastrou a doença. É que,
como nas árvores, ela pode atacar a democracia tanto pelas folhas como
pelas raízes.
In RuiTavares.NetEtiquetas: autor convidado, RT
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