Como perder um país
Por Rui Tavares
CONSIDEREM-SE três notícias recentes:
Um tribunal ordenou que o movimento
Precários Inflexíveis apagasse, no seu blogue, comentários que
denunciavam práticas ilegais de recrutamento e utilização de mão-de-obra
porque a empresa em questão se sentiu “atingida na sua honra”. O
tribunal não quis averiguar se os factos relatados por pessoas que
diziam ter sido vigarizadas por esta empresa eram reais ou não. Na
prática, considerou que a “honra” de uma empresa merecia mais proteção
do que as denúncias das vítimas dessa empresa.
O Tribunal da Relação de Lisboa condenou
o advogado Ricardo Sá Fernandes por este ter gravado e denunciado uma
tentativa de corrupção e ter colaborado com as autoridades na
investigação da mesma, dando assim mais proteção ao corruptor do que à
descoberta da verdade. Na prática, a mensagem é: se souber de alguma tentativa de corrupção, não a denuncie nem colabore com as autoridades.
Para terminar, este fim-de-semana
soubemos que um ex-diretor das secretas, agora no setor privado, mandou
reunir um dossier sobre um competidor direto dos seus novos patrões, o
empresário Francisco Pinto Balsemão, incluindo rumores sobre a sua vida
privada. Há nesta notícia um certo “ar de família” com as ameaças de
revelar na internet boatos sobre uma jornalista que, segundo este
jornal, terão sido feitas pelo ex-ministro Miguel Relvas.
Ah, mil perdões — Miguel Relvas ainda não é ex-ministro? Lamentável lapso meu. Por momentos sonhei com outro Portugal.
Todo o português informado conhece estas
três histórias. Importa é delas tirar o sentido, que julgo ser o
seguinte: o jogo está neste momento tão viciado que a justiça se tornou
numa simples ferramenta de execução e reforço das desigualdades.
Como consequência, campeia a impunidade.
Empresas podem explorar a vulnerabilidade de jovens desempregados,
cientes de que no momento preciso conseguirão calar as suas vítimas. Aos
corruptores é dado todo o oxigénio para respirar, pois mesmo a um dos
advogados mais experientes do nosso país será mantida a cabeça debaixo
de água. E os interesses mais vis da política ou dos negócios, usando os
canais de relações e informações que angariaram no estado, fervilham na
carcaça em degradação daquela que foi uma galinha dos ovos de ouro,
tentando arrancar-lhe os últimos pedaços de febra.
É preciso o primeiro ato de decência de
demitir Relvas. Mas, para resolver isto, é preciso mais. É preciso abrir
as janelas e deixar entrar o ar. Para que servem os serviços secretos?
Se apenas para isto, extingam-se, pois fazem mais mal do que bem. Se
para qualquer bondade até hoje incógnita, reformem-se, mas com claro
escrutínio parlamentar, investigação independente e corpo de supervisão
reforçado. Sejam reforçados também os poderes da Comissão Nacional de
Proteção de Dados, para impedir que ex-agentes das secretas levem
consigo bases de dados adquiridas na República. Quanto à justiça,
mude-se a lei para que o uso corrente dos júris de cidadãos permita
levar um pouco de vida real à cabeça de alguns juízes.
Já sabemos como se perde um país. Agora temos de descobrir como reconstruí-lo.
In RuiTavares.Net
Etiquetas: autor convidado, RT
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