29.8.12

O ventríloquo

Por Baptista-Bastos
O PAÍS que pensa assistiu, entre o perplexo e o estarrecido, às declarações do sr. António Borges a Judite Sousa, na TVI. Perplexo porque viu um assessor substituir o Governo numa entrevista importante. Estarrecido pela frieza gélida com que o senhorito falou no extermínio do serviço público de informação, em troca de coisa alguma. A certa altura da extraordinária conversa, o sr. Borges, impávido e sereno, disse que a questão dos despedimentos previsíveis diria respeito ao novo "operador" logo que a RTP e a RDP fossem desmanteladas. O Governo lavava dali as mãos. Só um tolo admitiria que o preopinante falava com voz própria. Ele mais não era do que o eco, à sorrelfa, de Miguel Relvas, dissimulado nos bastidores pelas públicas razões conhecidas.
Há algo de desprezível na conduta moral de quem se serve de um outro para dizer o que, no momento, não está interessado em afirmar; e de repugnante, naquele que se substitui com a cara, a voz e a ideia. Ambos se equivalem e ambos são a imagem restituída da baderna a que chegámos.
A esta farsa não estará alheio o primeiro-ministro. Não passa pela cabeça de ninguém que o enredo foi montado sem o seu conhecimento. De qualquer das formas, ele terá de esclarecer o assunto. O sr. Borges, ao falar, como falou, assertivo e veemente, da privatização da RTP e da RDP, do que vai mudar e do que vai ser concessionado; dos funcionários que a entidade "compradora" entenderá, ou não, estarem a mais; da extinção absoluta do serviço público e da sua eventual entrega a interesses estrangeiros - disse-o com conhecimento de causa e no registo comum a um governante.
Este desvio do discurso cultural e político transforma-se num apelo ao desmantelamento dos percursos habituais das nossas heranças. Além da gravidade da proposta, e da natureza agressiva do seu conteúdo, que tende a subalternizar a própria democracia, parece-me insultuoso que seja um estranho ao Governo a dar notícia dos factos. E a pôr em causa, com displicente indiferença, a vida de quase duas mil pessoas.
As atitudes deste Executivo têm dissolvido o pouco que nos restava de orgulho nacional. Nenhuma neutralidade pode arbitrar estas pequenas infâmias. E são-no porque o desdém demonstrado pelos governantes parece querer criar as suas próprias razões.
A mística do neoliberalismo, perante um mundo sem pátria e de pensamento único, tem como objectivo o domínio pela obediência, pela submissão e pelo medo. O papel do sr. António Borges é o de um factotum desprovido de toda a singularidade. Em causa estão a grande crise de valores de que enferma a nossa época e a supremacia da finança sobre a diversidade civilizacional. Alegremente, caminhamos para o desconhecido, sabendo-se, de antemão, pelo que resulta da experiência, a configuração da catástrofe.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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«DN» de 29 Ago 12

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2 Comments:

Blogger José Batista said...

É obsceno que o governo de um país entregue uma empresa pública ao setor privado, ao mesmo tempo que lhe entrega dinheiro e fazendo os cidadãos contribuintes arcarem com "obrigações" durante décadas.
Mas também é obsceno afirmar que um canal como o canal 1 presta serviço público.
E que aquela gentinha que lê notícias, faz fretes aos governos ou uns entretenimentos mal engrolados ganhe principescamente.
Se o Mário Castrim vivesse talvez lhe chamasse "caneiro".
Já o canal 2 justifica, a meu ver, a designação de serviço público.
E o problema reside aqui: o que disse é... a meu ver.
Agora, há uma coisa, por que raio hei-de eu pagar na fatura da edp (creio que é aí) uma despesa para a televisão que me repugna?
Não se tratando de um bem imprescindível (a meu ver...), não seria possível fazer pagar a coisa apenas a quem gosta de a consumir?
A questão é irresolúvel ou apenas (muito) difícil?

29 de agosto de 2012 às 11:44  
Blogger Carlos Esperança said...

Um serviço público não pode ser privado. É uma impossibilidade conceptual.

Creio que o Tribunal Constitucional ainda vai fazer engolir ao gang das licenciaturas de marca branca o anúncio feito pelo empregado do sr. Jerónimo Martins.

30 de agosto de 2012 às 00:40  

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