21.11.12

Resposta na tarde escura

Por Baptista-Bastos
NÃO ME APETECE escrever sobre estes tipos. Digo à Isaura. Não escrevas; sempre fizeste o que te apeteceu, diz ela. Não é bem assim, digo. Estamos na sala, por detrás dos vidros um pouco embaciados, e a chuva toca-os de leve. A tarde está escura e começam a acender-se as primeiras luzes, na rua e nos prédios. Anoitece muito cedo; tarde escura, suja, como o País, escuro, sujo, nocturno e triste. Olho-a. Ela mantém-se aparentemente alheada, mas não o está. Sempre muito atenta, mesmo quando parece suspensa. Sorri agora. Conheço-a desde que ambos éramos novos e tínhamos a idade daquele nosso mundo. Eu estava desempregado, coisas da política, e metera-me noutras. Ela sabia de tudo e andávamos de mãos dadas, sem receio e alegres.
Sempre fizeste o que te apeteceu, repete. Como os nossos filhos, obstinados e recalcitrantes. Mas ganhei, penso. Os outros julgam que não, que perdi, mas a verdade é que foram eles os vencidos; estão lá, impantes e brunidos, porém vencidos. Mereceu a pena tanta luta, tanto desafio, tanto perigo, vertigem e desatino para chegarmos a isto? A Isaura não o diz: observa-me e afaga-me no rosto e na cabeça. Não é preciso mais nada.
Põe os pés na terra; voas em excesso e sonhas em demasia, dizes-me, frequentemente, mas sem me recriminar. Agora já não tanto, mas houve vezes em que me esquecia de ter dinheiro, da carteira, e tu colocavas-me alguns trocos nos bolsos. Aqui há tempos, descobri, no bolsinho da lapela, uma nota velha de vinte escudos. Rimo-nos. Ainda sobrava um pouco, apesar de tudo. Nada de amolgar a esperança. A principal virtude da vida é ela estar sempre em acrescento, e nada, mas nada mesmo, é definitivo. Atrás de tempos, tempos virão.
Está bem: mas os anos não param, nem sequer um bocadinho. E eu sinto-me envelhecer. Estou na idade do condor: com dor aqui, com dor ali, com dor acolá. Ora, ora, os anos são somente números. Um dia, li que a vida feliz é, ao mesmo tempo, longa e breve. Até falámos nisso, recordo-me bem, tinhas sido operado a uma chatice grave, a família estava preocupada, e tu, antes de entrar no bloco operatório, piscaste-me o olho e disseste: quero arroz de polvo para o jantar.
Mas sabíamos para aonde íamos. Isso dizes tu agora. Nunca ninguém sabe para aonde vai. Sobretudo os da nossa condição. Os processos de demolição da consciência humana são cíclicos. Ora, ora. Ora, ora, não. As coisas são o que são e são mesmo assim. Mesmo nas épocas mais infelizes, citavas Hemingway: "O homem não nasceu para a derrota. O homem pode ser vencido, nunca destruído." Olha, tocaram à campainha da porta. Esqueci-me de te dizer que os nossos netos vêm aí com os pais.
Estão jubilosos. Nota-se pelo brilho nos olhos. Ele endireitou os ombros que haviam descaído. Ela ajeitou o cabelo com as mãos. Caminham para a porta.
«DN» de 21 Nov 12

Etiquetas: