27.11.13

Ramalho Eanes

Por Baptista-Bastos
Uma firmeza de carácter que poderia ser entendida com juízos contraditórios, tanto mais que ele raramente sorria. Conheci-o em 1977, durante o 11 de Junho, na Guarda. Fora enviado à cidade alta, para relatar, em uma página do Diário Popular, o que se me afigurava fastidiosamente desinteressante. Não o foi. E, em vez da página combinada, a qualidade comovente dos acontecimentos impeliram-me a escrever um suplemento de dezasseis. A acompanhar-me, Rocha Pato, correspondente do jornal em Coimbra, estimado camarada e jornalista fora do comum. O homem aparentemente distante, recém-eleito Presidente da República, foi à sala da imprensa. Quando lhe disse o meu nome, ele respondeu: "Sei muito bem quem o senhor é." E apertou-me a mão com firmeza e calor. António Ramalho Eanes. Ficámos amigos até hoje. Com ele viajei por Portugal e ao estrangeiro. Aprendi que ele dispunha de um sentido de ironia por vezes devastador, e que, apenas com uma frase era bem capaz de definir um homem e o seu cunho. Em épocas menos airosas da minha vida, havia sempre umas palavras, pelo telefone ou em carta. Certa vez, estava eu a passar pelos atropelos de uma insídia, ele telefonou e disse-me: "Não se esqueça de que só apedrejam as árvores que dão fruto." Não esqueci.
Um homem como este, que desperta a estima em pessoas tão diferentes como Miguel Torga, Jorge de Sena, Vasco da Gama Fernandes ou Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira, terá de possuir algo de distinto e até de oposto aos hábitos e vícios da época. Num tempo desvairado, onde a mentira e a omissão se sobrepõem aos valores da integridade, da honra e da decência, Ramalho Eanes é peça quase única. Eu, pelo menos, conheço poucos ou nenhum que se lhe equipare. Ele é um homem com a respeitabilidade antiga, daqueles para quem o aperto de mão constituía um compromisso irrefragável; um desses raros cavalheiros da velha fidalguia de província que jamais quebra o pacto de decoro e de brio estabelecido consigo mesmo. De contrário, seria "uma vergonha."
A homenagem que lhe fizeram vem na hora própria porque abre um parêntesis de memória virtuosa no lamaçal em que se pretende afogar-nos. O Marcelo, como lhe é costume, tentou confundir a reunião da Aula Magna com o tributo a Eanes, demarcando uma como de Esquerda e outra de Direita. Astúcias frequentes no comentador, tal o velho palhaço Chacrinha, na televisão brasileira, que dizia: "Estou aqui para complicar; não para explicar." A verdade é que tanto Soares como Eanes, se não obtêm unanimidades, conquistaram o afecto de muita gente de Direita e de Esquerda, indiscriminadamente. Viu-se, aliás, nos dois acontecimentos aludidos. E se esse afecto não é determinado pelos mesmos motivos e razões, outros há, de certeza, que aclaram e justificam a sua peculiar natureza. Uma certeza: nenhum destes dois está no outro lado da História.
«DN» de 27 Nov 13

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2 Comments:

Blogger José Batista said...

Eanes é, sempre foi, um Homem íntegro.
Houve aquela inabilidade política do PRD, mas isso não afecta a dignidade do Homem nem do cidadão.
Em excelente exemplo de honradez, dignidade e carácter, que não fez escola nas altas esferas (nem nas baixas...) da democracia portuguesa, infelizmente.

27 de novembro de 2013 às 19:05  
Blogger Agostinho said...

Infelizmente, para nossa desgraça, o petróleo da Europa corrompeu as gerações que vieram a seguir.

27 de novembro de 2013 às 22:20  

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