São Francisco pregando o mural aos pássaros
Banksy
pinta paredes e o meu vizinho toca trompete. Quer dizer, o meu vizinho
anda a aprender a tocar trompete, e às três da manhã. Eu até às três da
manhã era capaz de desculpar o Chet Baker, se ele quisesse voltar e ser
meu vizinho. Os pinta-paredes são insuportáveis. Contra eles eu até
admitia que voltasse o pouco higiénico hábito de esvaziar os bacios
pelas janelas. Os pinta-paredes do Bairro Alto, por exemplo, era o que
mereciam: "Lá vai água!", janela aberta, bacio virado e o grito só
depois, apanhando os imbecis dos pinta-paredes desprevenidos. Todos? Não
Banksy, que é o Chet Baker dos pinta-paredes. Como Chet Baker era o
Banksy dos trompetistas. Que pena ele, que morreu há tantos anos e nunca
frequentou o meu bairro, já não poder acordar-me às três da manhã.
Felizmente, ainda há Banksy, ouvi falar de um mural dele em
Clacton-on-Sea.
Em Clacton-on-Sea, em outubro, faz dez graus e
chove - morrinha, como é costume no Essex, Inglaterra, mas sempre pingos
que escorrem pela gola da gabardina -, com oceano cinzento em frente e
um porto (Harwich) ao lado. É preciso querer muito lá ir, para ir. Eu
ia. Por causa do mural. Eu conto (podendo só trair, porque a genialidade
de Banksy é sempre traída): de um lado um grupo de cinco pombos
cinzentos, do outro uma andorinha de peito verde. Todas pousam num fio
que é sugerido pela separação das pedras, porque Banksy, como sabem, é
um artista urbano, um pinta-paredes dos bons, perdão, o pinta-paredes
bom. Perdão, ótimo. Aquilo que ele pinta atira-nos à cara. Uma parede
dói. O que arde faz bem.
O grupo tem cartazes e os pombos parecem
angry birds, pelo olhar franzido. Confirma-se com o que dizem os três
cartazes. Um diz: "Os imigrantes não são bem-vindos." Outro diz:
"Voltem para África." E o último: "Não toquem nas nossas minhocas." As
letras são pintadas de cinzento, o que torna mais duro e agressivo o que
dizem porque o cinzento não grita, diz com brutalidade calma. Os cinco
pombos jogam em casa, pombos são sedentários. Os de Clacton-on-Sea são
certamente de Clacton-on-Sea há várias gerações. Os Columba livia, como
os pombos de Clacton-on-Sea, são uma espécie que veio do Sul da Ásia mas
os atuais de Clacton-on-Sea já se esqueceram, são locais e pronto. Por
isso olham zangados para o intruso, a andorinha.
Conheço muitos
tipos de andorinhas, andorinha-da-rocha, andorinhão-negro e a minha
andorinha-de-rabadilha-cinzenta que ocupava os beirais dos velhos
sobrados da cidade da minha infância. Não conheço nenhuma andorinha de
peito verde, suspeito que é liberdade do artista. Mas a mensagem é
clara, o rabo bifurcado do passarito mostra que Banksy quer mesmo que
seja vista como andorinha. Pássaro errante, viajante, imigrante. Hoje
vou ver um amigo, preto como as asas de uma andorinha, filho de uma
muxiluanda, negra da ilha de Luanda, e vou velá-lo à Basílica da
Estrela, Lisboa, Europa. "Lembras-te das andorinhas, João?", certamente
tivemos essa conversa. E ele: "Se lembro, irmão. À volta das torres da
Sé, ao fim da tarde..." - conversa de gente de outros pousos, como as
andorinhas.
Afinal, não cheguei a ir a Clacton-on-Sea, o mural
veio ter comigo, apareceu nos jornais. Quando o vi, ri-me. Lembrou-me
uma piada antiga, de Coluche, um francês de frases assassinas servindo
um coração generoso. Dizia assim, a piada: "Esses portugueses que vêm
roubar o pão da boca dos nossos árabes..." Sempre pensei que era assim
que se devia atacar o racismo. Levando os racistas até à tolice de onde
eles nunca saíram. Julguei, então, que a piada de Coluche era a arma
mais eficaz contra o racismo. Depois de ver o mural de Banksy, achei que
este ainda era melhor, era São Francisco de Assis pregando, um falar
aos pássaros.
Um falar tão necessário que aconteceu que à câmara
de Clacton-on-Sea chegaram protestos contra o mural de Banksy,
considerando-o racista. E a câmara, como está em vésperas de eleições,
marrou como uma barata tonta. Marrou, porque foi assim, violenta: apagou
o mural. Como uma barata tonta, porque é imagem que não precisa de
explicação, nem para baratas tontas. Os pombos locais, peito emproado,
são afinal mais importantes do que nem eles suspeitavam: podem apagar a
inteligência. E os tolitos com boas intenções são os idiotas úteis dos
pombos emproados. A andorinha verde é a única que sobreviveu ao mural.
Voou, porque o natural das andorinhas é ir daqui para ali.
«DN» de 4 Out 14Etiquetas: autor convidado, F.F
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