17.12.18

Apontamentos de Lagos - «De Esopo aos nossos dias»


Alguns dos mais saborosos capítulos de “D. Quixote de la Mancha” são os que contam como Sancho Pança governou a sua Ilha Barataria — o que fez com grande sucesso, não só por ter usado abundantemente o senso-comum que o caracterizava, como por ter seguido à risca os conselhos do seu estimável amo.

Ora, e no que a estes respeita,o autor salienta que o “Cavaleiro da Triste Figura” só disparatava quando estavam em causa assuntos de cavalaria, sendo muito assisado no respeitante a todos os outros. E esses sábios conselhos versavam tudo e mais alguma coisa, desde a forma correcta de andar, comer, vestir, cavalgar e falar, até à higiene das unhas, sendo um perfeito manual de comportamento que, em muitos aspectos, nada perdeu em actualidade.

Ora veja-se este:
«Não faças muitas leis, e, se as fizeres, procura que sejam boas, e sobretudo que sejam respeitadas e que se cumpram; que as leis que se não respeitam é o mesmo que se não existissem; antes mostram que o governante que teve discrição e autoridade para as promulgar, não teve valor para fazer com que se cumprissem, e as leis que atemorizam e não se escutam vêm a ser como o cepo, esse rei das rãs, que ao princípio as espantou, e depois menosprezaram e treparam para cima dele».
Trata-se da fábula de Esopo “O Rei das Rãs”, com mais de 2600 anos, que nos fala de umas rãs que, irritadas com a anarquia que reinava lá no charco, pediram a Zeus que lhes mandasse um rei que metesse ordem na casa. Não as levando a sério, o Rei dos Deuses atirou-lhes um cepo que, caindo no meio da água com grande fragor, as assustou e manteve em respeito. No entanto, “foi sol de pouca dura” pois, a breve trecho, todas viram que daquela “autoridade-da-treta” não vinha qualquer perigo e, saltando-lhe para cima, voltaram à anarquia habitual.
Como todos sabemos, a fábula não só é certeira como é perfeitamente actual, pois não faltam povos com uma atracção irresistível pelas leis-da-treta, vivendo uma farsa colectiva que abrange o legislador que as produz, o cidadão que as desrespeita, as autoridades que não actuam e os tribunais que também não ajudam muito.
Quanto a nós, consolemo-nos com o facto de que essa comédia não é só de agora, e muito menos uma especialidade caseira — note-se que, já no século XIX Mark Twain gozava com a inércia da polícia de Nova Iorque quando, em “O Pretendente Americano”, propunha que se substituíssem os respectivos agentes por MORTOS, alegando que estes fariam o mesmo que os VIVOS... e por metade do preço.
Só as limitações de espaço me impedem de relatar os inúmeros casos que conheço, de terras com autoridades a mais (que se estorvam, ou até se anulam umas às outras), de outras com autoridades a menos (ou sem meios), e de outras, ainda, com autoridades em número correcto... mas cuja principal actividade consiste em assobiar para o lado. 
Ah!, reparo agora, mesmo no fim do espaço disponível, que dissertei sobre muita coisa, mas não falei cá da terra, o que seria o corolário de tanto circunlóquio. Mas não é grave; talvez possa deixar essa parte ao cuidado dos leitores, não acham?
.
C. M. Ribeiro / "Correio de Lagos" de Novembro de 2018

Etiquetas: ,

4 Comments:

Blogger Ilha da lua said...

Muito bem!Nem precisa de falar da "terra"...Nem de tantas outras terras... Esta fábula aplica-se,completamente, aos nossos dias
Os meus cumprimentos e votos de um Feliz Natal e de um bom Ano Novo

18 de dezembro de 2018 às 01:03  
Anonymous Anónimo said...

Quanto às leis inúteis... completamente de acordo.
Temos um sistema de leis confuso e abusivo.
Quanto à polícia, não conheci a realidade da polícia de Nova Yorque no Séc. XIX, mas estou certo que não é comparável à dos nossos dias.
Aliás, considero deprimente esta insistência em ridicularizar os profissionais de uma das Instituições mais importantes para qualquer sociedade.
É a polícia ou a ideia dela que evita que um qualquer marmanjo viole as nossas irmãs ou as nossas mulheres e filhas.
São também os polícias que protegem tudo aquilo que vamos conquistando com esforço .
Estas são as funções elementares e essenciais da polícia, caso contrário viveríamos todos num contínuo desassossego e tomados pelo medo.
Uma vez que podemos todos desfrutar da nossa segurança recostados nos nossos sofás, no tranquilo convívio com os que nos são mais próximos, concluo que a polícia é, na sua génese, eficiente.
Como tal, faço sempre questão de demonstrar o meu apreço por estes cidadãos que, no contrato social, se chegaram à frente para nos livrar da responsabilidade e do desgaste de energia necessário para provermos a própria segurança.
Devíamos era exigir que recebessem melhores ordenados e tivessem melhores horários e meios para trabalhar, em vez de valorizarmos apenas os pequenos defeitos que eventualmente possam ter.

18 de dezembro de 2018 às 01:53  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Caro Anónimo;
Os textos de Mark Twain são humorísticos, são caricaturas e, portanto, exageradas.
Não se podem levar à letra, obviamente.
.
Mas no caso presente, o texto foi publicado no "Correio de Lagos", cidade onde a PSP não tem correspondido ao que dela seria de esperar.
Criou-se agora uma Polícia Municipal, em parte por causa disso, mas não será solução.
__
Feliz Natal

18 de dezembro de 2018 às 08:43  
Anonymous Anónimo said...

Caro CMR,
Realmente, uma Policia Municipal, parece um boa ideia.
Certas questiúnculas relacionadas com a falta de civismo e urbanidade da parte das pessoas, requerem grande especialização e disponibilidade total. Para isso, nada melhor que uma polícia especializada nas inúmeras e intrincadas posturas municipais. Pena não estar a resultar.
Feliz Natal!
Ribas.

18 de dezembro de 2018 às 21:03  

Enviar um comentário

<< Home