8.3.19

O Machismo português

Por Filomena Mónica
A vida moderna traz consigo alguns benefícios. O telemóvel – não o meu, visto não possuir um – mas o dos outros têm-me dado a acesso a um submundo que me era alheio. Desde que estou doente, tenho passado milhares de horas sentada em salas de espera de consultórios e em espaços destinados a tratamentos demorados. A certa altura, dei comigo a prestar atenção às conversas que algumas raparigas tinham, via telemóvel, com familiares.
A primeira, uma mulher jovem, contava a alguém, do outro lado do fio, que estava tão farta de levar pancada do marido que decidira fugir, com o filho, para os Açores. A interlocutora tentava convencê-la a desistir do projecto, com o argumento de que isso acarretaria má reputação para a família. Quando me chamaram para ir ao médico, cruzei-me, no corredor, com um par. Ela vinha a chorar baixinho; ele falava-lhe aos berros. Eis uma frase que me ficará na memória: «Então, havia de ser logo agora, quando estou de férias, que havias de arranjar um cancro…». Reencontrei-os na sala da quimioterapia. Foi ali que percebi que o energúmeno trabalhava numa plataforma do petróleo e que, como dizia, precisava de gozar a vida.
 Chegada a casa, decidi ler alguns acórdãos sobre a violência exercida pelos homens. O mais polémico data de Outubro de 2017 e diz respeito a uma mulher, de Felgueiras, que, em 2015, fora agredida por um marido após ter tomado conhecimento de ter ela tido um amante. A peça jurídica era assinado pelos juízes desembargadores Neto de Moura e Maria Luísa Arantes. Como é hábito, a linguagem é torpemente jurídica, a dimensão despropositada e o conteúdo inacreditável. O acórdão justifica a manutenção de pena suspensa para o agressor argumentando que «o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem», ao que se seguia a afirmação da existência de sociedades em que a mulher adúltera era alvo de lapidação até à morte, como o dizia a Bíblia, e como aparecia no Código Penal de 1886, o qual «punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse». Estes dois juízes – curiosamente um do sexo feminino - viam com simpatia o acto do marido ultrajado.
O acórdão deu origem a uma discussão interessante sobre o papel do Conselho Superior de Magistratura, mas não é disso que desejo falar, mas do facto de o machismo nacional ser antigo e atravessar as classes sociais. Recordo o ditado «Sebastião come tudo, tudo, tudo/Sebastião come tudo sem colher/Sebastião fica todo barrigudo/e depois dá pancada na mulher». Do outro lado, temos o «Fado Marialva», de D. Vicente da Câmara, cujo refrão inclui os seguintes versos:«Eu cá para mim/Não há ou ó não/ Maior prazer do que o selim e a mulher. /Rédeas na mão/, sorrir, amar,/ trotar esquecer e digam lá se isto é descer!».
                        Publicado no Expresso de 2 Mar 19

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1 Comments:

Blogger Ilha da lua said...

Quando li a sua crónica,relembrei a cantilena do Sebastião e a letra do fado do D.Vicente da Câmara,que me fartei de ouvir,e só quando tive consciência me fixei no comportamento social de que eram reflexo Somos um país com uma enraizada tradição machista Alguma dela camuflada em homens bem falantes Basta ver-se a diferença salarial existente entre homens e mulheres,em algumas áreas,exercendo ambos o mesmo trabalho. O problema da violência doméstica,tornou-se escandaloso Desde o princípio do ano,foram assassinadas doze mulheres!E foi preciso esta hecatombe,para se acordar e tentar perceber o que está mal E,muita coisa corre mal Mas,há uma que me deixa estarrecida A propósito de quê,a vítima tem que abandonar a casa juntamente com os filhos para se refugiar numa casa de acolhimento?Não será mais justo e correcto ser o agressor a sair de casa e ser reencaminhado pra uma casa de reeducação ou de correção?

9 de março de 2019 às 22:59  

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