26.5.19

Grande Angular - Nós e o património

Por António Barreto
As eleições chamam a atenção para a definição do que é a Europa. E cada vez mais sobressai uma evidência: realmente europeu é o património. A história e a cultura. À cultura europeia também pertence a religião, que não nasceu na Europa, mas na Europa se fez e hoje aspira à universalidade. E outros fenómenos europeus, como as liberdades, os direitos humanos e a democracia, deixaram de ser distintivos, são de vários continentes e espera-se que possam vir a ser do mundo inteiro. Também o Estado social parece ter as suas raízes na Europa, mas começa a ser olhado por outras paragens. Ao contrário de outras áreas, o património é o mais sólido e perene traço distintivo da Europa.
A Europa está a perder todos os dias para a América, a Ásia, o Próximo Oriente e a China. Talvez até para a Rússia e a Índia, mais tarde. A Europa tem cada vez menos a oferecer ao mundo. O património é, com a protecção social, o que a Europa tem de melhor e diferente, que outros não têm, têm menos ou diferente. A cultura é mesmo o que a Europa mais dá ao mundo inteiro, às centenas de milhões de turistas que vagueiam pelo mundo. O que vêm fazer essas pessoas à Europa? Beber, dormir, bronzear e comer, seguramente. Mas tudo isso pode também ser feito e consumido noutros sítios. O património é que não. Está construído, preso à terra e aos edifícios, fechado em museus, presente na sociedade, nos vales e nas planícies. E nas cidades.
Já ninguém duvida da existência da crise na Europa, na União e nos países europeus. O que a pode salvar? E o que pode salvar Portugal? Evidentemente, a liberdade, a economia e a ciência. Mas isso também se arranja noutros sítios, não faz a diferença. O que nos pode salvar e distinguir é a cultura e o património. A batalha da competitividade está perdida. Nada nos permitirá chegar aos pés dos Estados Unidos ou da China. As batalhas da ciência e da tecnologia estão perdidas, não tão inexoravelmente quanto as da competitividade, mas não teremos a hipótese do primeiro lugar. Com muito trabalho, um honroso segundo ou terceiro lugar. Mesmo se com atributos especiais, a democracia começa a viver por outros lados também. O Estado de protecção social é um bem querido, mas não é necessariamente uma oferta ao mundo. Já o património cultural é distintivo, único, com enorme capacidade de atracção. Cidades, aldeias e regiões, monumentos, edifícios e artes diversas. Há uma geografia patrimonial única e atraente. O património é uma realidade humana com valor. Ajuda-nos a viver. E a sobreviver. O património tem a vantagem de, sendo europeu, é irremediavelmente nacional. Tem identidade.
Com a Europa em crise económica, tecnológica e política, a cultura deveria transformar-se em prioridade. Do Estado, da sociedade e dos povos. Em tempos de capitalismo desregulado e de negócios sem escrúpulos, Portugal vai perdendo todos os dias. Para se distinguir da Europa e para a Europa se distinguir do mundo, só o património e a cultura. Sublinhe-se o património. Na verdade, tudo o que é móvel é transportável por definição. Por isso os museus e as salas de teatro e música do Próximo Oriente, do Japão e dos Estados Unidos proliferam.
Adefinição de prioridades para a cultura é uma das mais difíceis tarefas que se conhece. Especialmente porque, na hora de fazer contas, é considerada supérflua e dispensável. Além disso, definir prioridades é escolher e deixar alguém de fora. Ora, grande parte dos beneficiários das políticas culturais tem voz alta. E os “agentes culturais” têm altifalantes potentes, enquanto os autores do património estão mortos. Infelizmente, o património não ganha eleições. Mas o património é urgente.
O crescimento do turismo nos últimos anos foi um maná para a economia e o emprego. Foi talvez a mais importante contribuição para o crescimento económico. Já se percebeu que os turistas não vêm apenas pela praia e pelo vinho. As cidades, a paisagem, o património construído e humano, uma certa maneira de viver, os preços baixos, uma boa localização geográfica, paz nas ruas e ausência de violência religiosa ou política: tudo isso conta. Verdade é que o património tem desempenhado papel importante na atracção de visitantes. Basta vê-los, de pé, ao sol, em filas de espera de duas horas para entrar nos Jerónimos ou na Torre de Belém. É verdade que esses são fenómenos especiais, os restantes monumentos exibem números menores. Mas o certo é que as cidades interessantes (por exemplo Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Braga) não aguentam mais. Os conjuntos monumentais importantes (por exemplo Jerónimos, Belém, Batalha, Cristo e Alcobaça) não resistem mais. E muitas pequenas cidades estão a rebentar.
Portugal tem pouca cultura clássica para mostrar. Com excepção dos festivais pop e rock, os museus, os teatros e as salas de música são pouco visitados. Mas o que tem é importante. E o mais interessante é o sítio, a geografia, as cidades e o património. Tudo está a rebentar pelas costuras. A hotelaria está talvez a desfigurar parte das cidades. O peso, o stress e a pressão do turismo ameaçam destruir em poucos anos o que demorou séculos a construir. Portugal não soube prever este crescimento.
Em menos de vinte anos, o número de passageiros nos aeroportos passou de 20 para quase 60 milhões por ano! Em menos de quinze anos, o número de turistas passou de 11 para 21 milhões. E o de estrangeiros de 5 para 13 milhões. Se é verdade que uma boa parte do bem-estar actual se deve ao turismo, não é menos verdade que uma bomba ao retardador está à espera. A sociedade portuguesa não está preparada para esta avalanche. O património está mal protegido.
Outros acontecimentos recentes obrigam-nos a pensar a política de cultura e de património. Para além da intriga e do crime, as colecções Berardo, BES e Ellipse são realmente de importância excepcional. São milhares de obras (pintura, escultura, fotografia, livros e moedas) à espera do mercado, dos especuladores e dos tribunais, uma tríade fatal.
É razoável perguntarmo-nos o que se deve fazer com estas obras importantes. A pergunta é simples: deve o Estado comprar ou não? Desde que o negócio seja limpo e que se respeite a lei, o Estado deve comprar, conservar e divulgar. Para já, impõe-se a interdição de exportação. Moedas e livros são património histórico. Pintura, escultura e fotografia passarão a sê-lo. E tudo será património público. É assim que deve ser.
Longe de nós, Notre Dame recorda a eternidade da história e a fragilidade do património. E a certeza da cultura.

Público, 26.5.2019 

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