28.6.19

Vergonhoso tratar-se assim o São Carlos

Por Joaquim Letria
Regressei a Lisboa um dia mais cedo para assistir à Boheme em São Carlos. Não valeu de nada. havia greve e não havia cantores nem bailarinos a cantarem e a dançarem ainda que todos estivessem presentes no largo fronteiro ao teatro, o que proporcionou uma troca de ideias, informações e opiniões civilizada e interessante entre público e artistas que a mim não surpreendeu mas deixou muita gente estupefacta.
Há anos que os artistas da orquestra, coros e corpo de baile de São Carlos pedem respeitosamente e com maneiras que alguém daqueles que mandam neles lhes melhorem as condições de trabalho e também lhes aumentem um pouco os baixos salários que auferem para dar prazer a muita gente que os aprecia e a milhares de estrangeiros, entre os viajantes e os turistas que esgotam os bilhetes daquele maravilhoso teatro onde ouvi os maiores do mundo no século XX, designadamente Maria Callas, Di Stefano, Renata Scotto, entre outros.
As queixas maiores dos artistas do Teatro São Carlos que connosco conversavam, dando a cara e assumindo as razões da sua greve eram não terem recebido, sequer, um telefonema, uma mensagem de telemóvel, um telegrama, um SMS ou um e-mail em resposta ao pedido de contacto da companhia de São Carlos. Também eu fiquei admirado porque desde a ditadura e durante a democracia não me ocorre que os artistas líricos portugueses, merecedores dum mínimo de respeito, assim tivessem sido tratados pela tutela, como a “prima ballerina” chamava à senhora agora nomeada para exercer as funções de ministra. É vergonhoso tratar-se assim o São Carlos.
O trabalho esforçado, as horas ininterruptas de ensaios e de estudo de cada uma das especialidades, a pressão, exigência e tensão nervosa com que cada artista luta para conquistar o respeito que merece, obrigaria que a tal tutela tivesse, no mínimo, o respeito devido a gente muito especial e única que confere ao nosso rosto de portugueses uma qualidade respeitável, única e irrecusável. Não somos só bons a jogar futebol. Também nas artes temos muita gente, e em particular muitos jovens, a merecerem o maior apoio e a maior admiração.
Por isso, entregar esta gente a funcionários boçais ou birrentos e, principalmente, sem maneiras nem saber estar, parece muito mal. Para já, às dezenas de estrangeiros que atónitos escutaram as razões e o tratamento desta greve. Não basta só vender-lhes sardinhas assadas. Enfim, pelo menos levam mais alguma coisa que contar no regresso às terras civilizadas a que pertencem.
Publicado no Minho Digital

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