24.5.20

Grande Angular - Esquerda! Direita! Volver!

Por António Barreto
Vinte anos são poucos para qualificar um século. Mas não se pode negar que o XXI começou mal! As duas primeiras décadas são aflitivas. No mundo inteiro.
Logo no inicio, as Torres de Nova Iorque. A partir daí, o terrorismo islâmico instalou-se. E quase inspirou outros que se seguiram. A invasão do Iraque foi exemplo de desastre. Na Líbia e na Síria, as guerras atingiram inimagináveis graus de violência. As democracias árabes, esperança precoce, transformaram-se rapidamente em desastres autoritários. As guerras de drones, conduzidas pelas nações mais poderosas, sobretudo pelos Estados Unidos, trouxeram uma nova arma de que a humanidade não se vai orgulhar.
As alterações climáticas marcaram o planeta, muitas das suas consequências são já irremediáveis. Perante elas, a incapacidade humana é a mais evidente realidade. Alguns desastres ditos “naturais” deixaram recordações perenes. O furacão Katrina de Orleães mostrou a vulnerabilidade do país mais rico do mundo. O Tsunami asiático revelou a amplitude possível da devastação. Os piores incêndios florestais da história da humanidade queimaram a Califórnia, a Amazónia e a Austrália, assim como a Grécia e Portugal. As piores secas e as mais severas inundações ficaram na memória de gente. 
As crises financeiras abalaram o mundo. Gigantescas falcatruas revelaram a infinita capacidade criminosa do dinheiro. As crises das dívidas soberanas diminuíram a força das entidades políticas. A UE exibiu a sua debilidade política. As migrações ilegais em massa e a procura de refúgio político na Europa e na América serviram para revelar desumanidade e impotência. A desigualdade social atingiu graus inesperados, assim como o crescimento obsceno de fortunas em poucas mãos.
A crise (comercial, financeira e política) entre os Estados Unidos e a China ameaça o mundo inteiro e não dá sinais de ter um termo à vista. Consolidou-se o fiasco definitivo do socialismo e do comunismo, apenas sobrando, desse modelo político, um país, a China, que produziu a aliança improvável entre dois absolutos, o da ditadura política e o do capitalismo desenfreado. As ameaças à democracia chegam-nos de todos os lados, de quase toda a África e de grande parte da Ásia, dos Estados Unidos, do Brasil, da Venezuela e da Hungria. É crescente a perda de importância da nobre Europa e da sua União, em plena decadência política, como todos os fidalgos. 
Em Portugal, fomos poupados a muitas desgraças, como seja, até agora, o terrorismo. Mas tivemos também a nossa quota-parte. Incêndios florestais como nunca se tinham visto. Vinte anos de crescimento económico quase zero. Partilhámos, até com excesso, as crises financeiras e de austeridade. Conhecemos a maior trapaça financeira da história do país. E talvez o mais corrupto governo de sempre.
A pandemia sanitária e a profunda crise económica e social que se vai seguir exigem excepcionais esforços de convergência. E até de patriotismo, conceito em desuso. Nenhum partido sozinho será capaz de resolver o que é necessário. A esquerda, sozinha, não tem soluções em liberdade. E talvez não tenha também para o investimento e o desenvolvimento. Por sua vez, a direita, sozinha, não tem soluções para a protecção social e a justiça. E talvez também não tenha para a liberdade.
E, no entanto, quando se pensa que as soluções políticas podem vir do esforço conjugado de várias forças, logo cai o Carmo e a Trindade! Bloco central não! A esquerda sozinha é que é boa. A direita sozinha é que é boa. Para a cultura política nacional, tudo o que não seja puramente esquerda ou direita cai mal. O “centrão”, o bloco da corrupção, o caldeirão central… Todas essas soluções são malditas!
Ora, em democracia, já tivemos uma dúzia de anos de governos de direita sozinha, assim como outros tantos de esquerda sozinha. Também tivemos outros anos de um só partido ou de misturas. Uma coisa é certa: não há regras nem padrões. Já houve bloco central e governos de um só partido e governos só de esquerda e só de direita. Ninguém, nenhuma solução monopolizou o erro, o disparate ou fragilidade. As várias soluções mostraram tudo aquilo de que foram capazes: trabalho patriótico, crescimento, liberdade e honestidade… e o seu contrário! Não é possível dizer que o bloco central é necessariamente corrupto ou que a esquerda e a direita sozinhas são a instabilidade e a violação da liberdade.
Foi com governos de uma só cor que se assistiu aos desastres financeiros, às políticas de austeridade, a alguns dos piores episódios de corrupção e ao desenvolvimento da porta giratória entre o governo e os interesses. A destruição do sistema bancário e do que sobrava do capitalismo português foi metodicamente levada a cabo pela esquerda e pela direita, ora aliadas, ora a governar sozinhas.
Não se percebe por que razão é tão difícil encontrar soluções governativas de maioria alargada, sem união nacional. Tantos países, na Europa, tiveram de recorrer a essa solução e a maior parte não se arrepende. Dói ver a enorme atracção que tantos revelam pelos desastres dos outros, mesmo sendo os desastres do país! É tentador pedir boleia à desgraça das instituições e do povo para criar um salvador, pessoa ou partido. A direita pede um novo clima ético, uma nova atitude patriótica e a refundação da pátria, se preciso for. A esquerda reclama novos modelos sociais e políticos, uma democracia alternativa e um novo sistema político! Todos aspiram a aproveitar o desastre! Era bom pensar que, se desastre houver, muitos deles são capazes de naufragar também. Como é possível imaginar que a salvação, a liberdade ou o desenvolvimento nascem de milhões de precários e desempregados, de milhares de mortos e infectados, de falências e fraudes sem fim?
Quem havia de dizer que, nas esquerdas e nas direitas, encontraríamos um dia reminiscências das teorias de Schumpeter sobre a destruição criadora do capitalismo? Aflige ver a exigência de novos modelos de sociedade, de economia, de consumo e de Estado e acreditar que esses modelos, ou lá o que forem, estão à espreita de uma oportunidade para vingar por cima dos escombros da sociedade actual. Por cima do capitalismo e da democracia actuais, e até, ironia maior, por cima do esquerdismo actual.
A esquerda sozinha não consegue resolver os próximos anos. A direita sozinha também não. Muito menos um só partido. Não custa reconhecer o inevitável. Mesmo quando este não nos agrade. Eis por que prever e prevenir são actividades nobres. Eis por que preparar-se é um dever.
Público, 24.5.2020

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