Grande Angular - Uma questão de educação
Por António Barreto
É uma discussão muito interessante, eterna e que volta sempre que é enterrada. Deve ou não a educação inculcar valores? Formar cidadãos? Modelar mentalidades? Educar os jovens no cumprimento dos seus deveres? Respeitar as regras morais estabelecidas pela Constituição? Reproduzir as crenças das gerações anteriores? A todas estas perguntas, a minha resposta é negativa. Não! A Educação dispensada pelo Estado em regime democrático, designadamente a escolaridade obrigatória, não deve inculcar valores, moldar espíritos, formar consciências, criar cidadãos… Nem sequer produzir boas pessoas ou cidadãos exemplares. A instrução ajuda muito ao desenvolvimento humano, mas não são aquelas as suas funções.
Àquelas perguntas, ao longo das décadas e dos séculos, foram sendo dadas respostas diversas, sendo que a controvérsia não cessou. Nunca houve acordo nem consenso. Mas, de vez em quando, ao coexistir com outras polémicas mais prementes, esta disputa acalmava-se. Agora, reapareceu! E ainda bem.
Como é sabido, a discussão faz-se à volta do conteúdo da disciplina de “Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento”. O facto imediato é o da contestação de uns pais que desejavam retirar os filhos dessas aulas que consideravam atentatórias da formação que lhes queriam dar, pelo que reclamaram o direito à objecção de consciência. Aplaudido por organismos políticos e educativos mais situados à esquerda, o Estado recusou. No que foi muito criticado por vozes, organizações e personalidades, geralmente colocadas à direita. Mas, por uma vez, o afrontamento não é totalmente preto e branco. Há gente da direita no primeiro campo e gente de esquerda no segundo.
O currículo nacional, devidamente aprovado pelas leis vigentes e estabelecido pelos órgãos de soberania, não deixa abertas as portas à objecção de consciência. Nem de outra maneira poderia ser. Um currículo nacional serve para isso mesmo: para ser seguido, como unificador cultural de um país, sem objecções, até porque os programas académicos não devem dar o flanco a variedades ideológicas e a opções politicas ou religiosas. Deve, pois, ser respeitado.
O problema não é o da objecção de consciência. O problema principal é o da disciplina: não deveria simplesmente existir! Com este conteúdo em que tudo cabe, com este objectivo que é o de formar consciências, com esta preocupação que é a de modelar espíritos e orientar comportamentos em todas as áreas possíveis, da cultura à política, do direito às artes, dos afectos à sexualidade, do ambiente à natureza, esta disciplina deveria ser prontamente eliminada. A escola deve ser democrática, na sua função social, permitindo o acesso de todos, mas não deve ensinar a democracia nem a cidadania. Não deve muito menos orientar comportamentos e atitudes, modelar espíritos e formar consciências.
A melhor disciplina imaginável é um verdadeiro “Código da Estrada” da democracia, um guia para a Constituição e a Administração Pública. Sem juízos morais, sem regras de comportamento, sem valores éticos e sem imposição de valores.
A disciplina de “Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento” é uma armadilha e um tremendo equívoco. Tal, aliás, como outras variedades de que se fala com frequência: Educação para a Saúde, Educação para um Ambiente sustentável, Educação para a Saúde reprodutiva e Educação para a Igualdade. Ao abrigo dos melhores sentimentos, estamos em pleno delírio de ideologia e propaganda, ou antes, da manipulação e intoxicação. Vejam-se os conteúdos dos programas dessa disciplina e note-se a despudorada afirmação do que é ou deve ser virtuoso! Perceba-se o ambiente mental onírico e beato com que se desenvolvem os programas.
Esta “educação para a cidadania” é própria de todas as correntes políticas, culturais e educativas autoritárias que se arrogaram um qualquer direito de formar gerações e modelar consciências, para tal utilizando a escola, a escolaridade obrigatória e os programas escolares.
Foi esta a educação defendida pelos grandes republicanos de boa e má memória, firmes detentores da verdade, combatentes extremes da oligarquia monárquica, defensores da nova escola laica, livre e igual e partidários de uma escola empenhada que não se pode sequer conceber como neutra. A sua escola republicana era uma escola empenhada e parcial.
Foi também esta a educação própria dos corporativistas, integralistas, fascistas e salazaristas que sempre consideraram que a escola não deve nem pode ser neutra, que deve transmitir valores, ideias e convicções, que deve ensinar as boas regras de comportamento público, que deve ajudar todos a respeitar a lei e a moral e, acima de tudo, engrandecer o país e a nação. Esta escola não era neutra, antes devia cultivar os valores da Nação, de Deus, do Trabalho, da Família, da Constituição e da Ordem estabelecida.
Mas também é uma educação assim, empenhada, a que é própria dos comunistas e dos socialistas revolucionários de todos os tempos, desde as escolas soviéticas até às variantes tropicais do Bolivarianismo e do Castrismo. Denunciaram com energia a escola cristã, a escola fascista e a escola capitalista. E sempre consideraram que a escola não é nem deve ser neutra, antes deve traduzir e veicular os valores das classes trabalhadoras e do partido, em permanente louvor do socialismo.
Esta escola empenhada, inimiga da neutralidade, é também a própria das correntes católicas mais fervorosas, desde sempre adeptas de manter uma escola confessional, de estreita associação entre a religião, a moral e o civismo e que ensine a temer a Deus, lutando empenhadamente contra as perversões laicas da escola pública.
Esta concepção de escola empenhada é própria finalmente das correntes mais sofisticadas das ciências de educação, da pedagogia crítica e da educação activa, preparadas para formar cidadãos e criar agentes de virtude, prontas para o culto da pedagogia da libertação, inimigas da escola neutra que consideram uma armadilha dos poderosos. São estas as formas mais disfarçadamente ideológicas e despóticas, próprias dos autoritários.
Em quase todas estas ideias totalitárias, notamos a permanente obsessão com a “educação integral do ser humano”, inquietação que atrai tanto os católicos empenhados como os comunistas de vocação e os fascistas de aspiração. Sempre, no século XX, os autoritários ambicionaram moldar o carácter e, para isso, fundaram os Lusitos portugueses, os Balilas italianos, os Pioneiros soviéticos, os Flechas espanhóis, os Escuteiros cristãos, os Pimfs alemães… Sempre os déspotas sonham com a educação e a formação das jovens gerações!
Público, 13.9.2020
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2 Comments:
Completamente de acordo
Não concordo inteiramente, mas o fundo é inequivocamente verdadeiro.
Em minha opinião, a cidadania não é tanto uma coisa que se ensina, diz antes respeito ao que pratica, àquilo de que se dá o exemplo e que se deve exigir, em conformidade.
A discussão que tem havido à volta da disciplina ou área disciplinar de cidadania, com base na situação criada com dois alunos de Famalicão, é infeliz por vários motivos. E grandemente inútil.
E resulta de equívocos vários acerca do conceito de educação. Por isso não faltam educações... É caso até para perguntar de quantas "educações" carece um ser humano para ser "completamente" formado. Veja-se o absurdo de "Educação Física", o que significará? Quem é bem educado fisicamente? A ministra da modernização do estado? O "emplastro" do Porto? O papa Francisco?
Uma vez ouvi ao Maestro Vitorino d'Almeida que os pais dão educação, os avós dão (deviam dar...) tradição e a escola dá instrução. Tendo a concordar. A escola actual é uma mistificação de onde muitos tentam tirar rendimento. O que se passa com a chamada "educação especial" é outra fonte de equívocos, mas, como dá uns empregozitos e alivia pais, endeusa-se até no que é francamente negativo. Mas não se dignifica a escola. Nem, obviamente, o papel dos professores, os quais embarcam nos sarilhos em que os metem e pagam o preço correpondente.
O remédio não está para breve...
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