7.9.20

O CHEIRO DA MADEIRA na Feira do Livro


Sábado, dia 12, a partir das 18 horas, estarei no expositor da Âncora Editora, para o autografar

 

PREFÁCIO (da 1ª edição)

            Cheira-me a cal lavada, cheira-me às ervas-de-cheiro, às bolas e briquetes, à carqueja; cheira-me ao carvoeiro da minha infância, que também frequentei.

            Vejo uma faixa azul-celeste a ladear o umbral da porta, a orlar a esquadria da janela, a enlaçar longamente, garridamente, a cintura das casas.

            Vejo a luz do sol-menino a mudar a cor do trigo. Agora manhã doirada, logo os trigos de cobre do entardecer.

            Vejo a planície inundada de luz, depois a lonjura apagada.

            Oiço o Alentejo sob o ribombar dos trovões e a litania da avó: «Espalha-a lá para bem longe, onde não haja nem eira nem beira, nem raminho de oliveira... nem guedelhinha de lã, nem alminha cristã».

            E vêm-me à memória as cores dos impressionistas, os grandes girassóis da manhã, aqueles grandes girassóis da tarde, as cores do Sul.

            Para quê a RTP1 e a 2, a SIC e a TVI, os satélites?

            Ele é tudo isso, sem a violência, sem a publicidade, com respeito pela nossa inteligência e sensibilidade, com a cor, a memória, e a palavra dele, a um tempo social e intimista, descrente, por vezes mesmo herético e místico, mas, sobretudo, etnógrafo.

            Lê-lo é ver as fotografias, o filme, o vídeo, imagem-a-imagem, da sua primeira infância, depois a adolescência, num mundo e tempo e modo, agridoces, num tempo que também aqui tivemos, nas ruas de Lisboa, noutros ritmos, noutras cores, noutras palavras. É ouvir os «ralhos do pai do céu», é cheirar os linhos frescos, é ver a D. Adília a provar-lhe os fatos do remedeio sem «virados», é ver o coalho, o almece, o soro, a fazer riozinhos entrançados pela francela abaixo.

            Lê-lo é ler palavras belas, tão «fingidamente» artesanais, que parece ir afeiçoando com os formões, os badames, as garlopas do mestre Roberto. 

            Lê-lo é descobrir o que sempre soubemos dos jeitos dele, da personalidade multifacetada, do amor dos simples e deserdados, da familiaridade e respeito pela natureza, da timidez derrotada, da obstinação em conseguir o triciclo, o jeep, o túnel de Carenque.

            E é bom, é como estar lá, com os olhos, as mãos. A cheirar, a rir, a chorar.

 

Carlos Matos Alves

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NOTA INTRODUTÓRIA

            

Exercício de memória, sem a preocupação da pesquisa exaustiva e o cuidado do relato objectivo do cronista, vale mais como ensaio de reconstituição de um conjunto de acontecimentos dispersos, inseridos num viver colectivo e próprio de um certo ambiente de uma dada época – a cidade de Évora, no segundo quartel deste século. Romanceado ao sabor da sensibilidade de hoje, conserva, contudo, os recortes e os matizes com que os sentidos os registaram em recantos da memória, de onde os temos retirado.

Escrever estas histórias foi uma experiência muito curiosa, na maior parte levada a cabo nos últimos três anos, durante as chamadas férias de Verão. Muitas delas surgiram e tomaram corpo no acto de as relembrar, escrevendo. Há nelas imagens de há muito gravadas e nunca mais lembradas. Foi como o abrir de um velho baú, num sótão onde se não ia há muitos, muitos anos, e se reencontraram, com surpresa, objectos bem familiares passados para o lado do esquecimento.

Sempre que tal se justificou, por se tratar de aspectos de carácter etnográfico, ambiental ou sociológico, que merecessem tratamento com rigor em termos de ciência etnográfica, procurámos nos locais certos as informações necessárias. E, sempre que isso nos interessou, por razões de ordem poética ou outras próprias da ficção, permitimo-nos pintá-las nas cores que a sensibilidade ditou.

Não se pretendeu fazer história, quis-se contar histórias