O PROFISSIONAL DO APOCALIPSE
Por Joaquim Letria
O homem já deve ter morrido. Se não foi pela idade avançada foi pela devastação do COVID. Encontrei-o muitas vezes não muito longe da Avenida das Américas, sempre que eu tinha de ir a Nova York. Nunca troquei uma única palavra com o velho, mas lembrei-me agora dele em plena pandemia, num país sem rei nem roque. Não havia velho mais a propósito da praga a que procuramos fugir nem mais condicente com a cidade e o País onde nos cruzávamos.
O homem atacava-nos sempre nas imediações da Avenida das Américas e não era antipático nem procurava ser simpático. Simplesmente metia-nos um papel na mão e olhava-nos nos olhos sem uma única palavra. O papel, que no fundo era um panfleto com letras negras, gordas e desenhadas a traço grosso, limitava-se a dizer-nos que “O Fim do Mundo Está Próximo.”
A notícia deste papel, com que silenciosamente o homem procurava anunciar-nos a morte de todos nós, era o fim da Utopia, da História, do Teatro, da Natureza, da moral, da comida caseira, de tudo o que é nosso e vamos mantendo!
Sorrindo sem destinatário e sem uma única palavra, o homem acabava com tudo. Nestes tempos que atravessamos até parece que ele e o seu panfleto vêm a propósito.
Uma notícia destas, dada assim por um profissional do apocalipse, não se recebe de ânimo leve. Principalmente agora, connosco escondidos atrás de máscaras e viseiras, a lavar as mãos em gel de minuto a minuto, a fugir de quem de nós se aproxima. Apesar de tudo, ainda queremos acreditar em alguma coisa e dizer ao senhor que está enganado, que não tem razão e que vamos viver mais uns tempos.
Ignoro se aquele senhor ainda anda pelas imediações da Avenida das Américas. Se andar, ainda bem para ele, mas não devemos levá-lo muito a sério. Temos de acreditar que no mal também há sempre algo de bom. E que do final do planeta, se tal acontecer, talvez resultem sínteses geológicas fabulosas, com lápis-lazúli, turquesas e outras turmalinas que possam guardar nos seus cristais um fio de música sem fim e nos dêem quadros de cores nunca antes vistas. Oxalá.
Publicado no Minho Digital
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