11.4.21

Na “Nova Costa de Oiro” de Mar 21


LEMBRO-ME
bem de quando o meu velho amigo Filipe colocou à venda no OLX um vistoso jarrão de porcelana, simultaneamente com os 15 volumes da obra completa de Eça de Queirós, numa luxuosa Edição do Centenário; e também de quando, num dia em que eu estava em sua casa, bateu à porta o comprador, cavalheiro dos seus 45 anos, barrigudo, impecavelmente vestido, barbeado e penteado, acabado de chegar num magnífico carro topo-de-gama que estacionara em cima do passeio.

Quando ele entrou, deixei que o Filipe fizesse as honras da casa e depois, para não interferir na previsível discussão do preço, despedi-me delicadamente e fui apanhar sol para a varanda; mas nem por isso deixei de acompanhar a conversa, porque o homem falava alto, distribuindo generosamente a sua voz por todo o espaço em redor.
Por fim, e depois de muita e animada conversa, a transacção, que já estava apalavrada anteriormente, lá se concluiu; e enquanto o Filipe acondicionava o jarrão e os livros em caixas que já preparara para o efeito, apercebi-me de que o outro, cirandando pela sala, se detivera em frente à estante dos livros, pelo que tive de reprimir uma gargalhada quando ele proferiu a inevitável pergunta:
— Você já os leu todos? — não esperando pela resposta para completar... — Pois olhe, eu nunca li um único, na minha vida!
Como é típico dos semi-analfabetos, ele não se referia à sua incultura com vergonha nem tristeza, mas sim gabando-se dela, adivinhando-se que gostaria de acrescentar «... e não precisei de livros para chegar onde cheguei!», pelo que fiquei com curiosidade de saber "até onde é que tinha chegado"; e vim a ter a resposta quando ele saiu:
— Sabes quem é este figurão? — perguntou-me o Filipe, rindo — É o Presidente da Junta de Freguesia de (...), e o que lhe vendi, a começar pelos livros que nunca irá abrir, é para enfeitar o novo gabinete. Mudou recentemente para o partido certo, e já está na calha para concorrer a Presidente da Câmara. E depois é só dar tempo ao tempo, para tentar fazer como tantos outros, que usaram o cargo como trampolim para ministros, ou mesmo PM ou PR, e não seria o primeiro a sair-se bem da acrobacia.
Dei-lhe razão, e fiz até um pequeno acrescento acerca da possibilidade de ele vir a ser eleito deputado; mas o meu anfitrião afastou essa ideia com o seco comentário de que “isso seria tudo menos subir”.

E foi dessa patusca personagem que me lembrei quando o Governo achou por bem proibir a venda de livros — embora, curiosamente, eu tenha encomendado um no ‘site’ da FNAC, que mais tarde levantei na loja — sim, na MESMA onde, ao alcance da mão, estavam os livros vedados com fitas!
Mas, já depois disso, Marcelo Rebelo de Sousa — que deve ler, num mês, mais livros do que os nossos governantes na vida toda — obteve uma meia-vitória para a cultura, conseguindo que os filhos de Gutenberg fossem brindados com uma espécie de “liberdade condicional”; triste vitória, porém, pois os livros apenas podem ver a luz do dia em lojas que vendam outras coisas!
E é assim que, à data em que escrevo, somos confrontados com o absurdo de ver os CTT, as bombas de gasolina e as grandes superfícies a venderem livros, enquanto as livrarias estão proibidas de o fazer... a menos que arranjem um cantinho para vender outras coisas — quiçá cuecas ou galos de Barcelos Made in China!
Por sinal, e nesse mesmo dia, Marcelo também se dirigiu à AR para que se alterasse a lei do ruído, no intuito de proporcionar sossego a quem está em teletrabalho ou envolvido em aulas à distância. Mas ainda bem que não foi atendido, pois, assim, eu e os meus vizinhos pudemos ser brindados (e em três dias seguidos!) com concertos matinais de motosserras da CML, que achou que o período de confinamento era o mais apropriado para “podar” (?) árvores e dar alguma animação ao bairro — uma gentileza que os moradores, se forem gratos, saberão retribuir lá para o final do ano.

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