23.5.21

Na Revista “Nova Costa de Oiro” de Abril de 2021

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NÃO deve haver muitos portugueses que não conheçam a Ponte da Arrábida, pelo menos de fotografias, na maioria das quais ela aparece vista de lado; no entanto, a parte inferior, com o seu conjunto de vigas em X que só se vêem bem estando junto ao rio, sempre me fascinou — e o que vos vou contar passou-se precisamente aí, pouco depois da sua inauguração.

 

NUMA bela manhã de sol, estava eu admirando a obra dessa perspectiva — e fazendo desenhos no bloco de apontamentos que sempre me acompanhava —, quando parou junto a mim um senhor de chapéu de feltro, bigodes farfalhudos e grisalhos, de cigarro ao canto da boca e mãos nos bolsos, que, intrigado com o que eu estava a fazer, resolveu meter conversa; e, depois de hesitar um pouco, atirou a beata para o chão e desfechou, com inconfundível pronúncia local:
— Ora então muito bom dia! Linda ponte, não é verdade? — E prosseguiu, indiferente à minha surpresa: — Sabe qual é o outro nome que ela tem, além de “Ponte da Arrábida”? — E vendo que tinha despertado a minha curiosidade, continuou: — Nós, os do Porto, chamamos-lhe “A ponte que dá ‘rábida´ aos de Lisboa” — Esclarecimento que rematou com uma gargalhada e um acesso de tosse.

 

AQUI chegados, é preciso explicar que a Invicta é completamente diferente da capital — e em TUDO, especialmente nas “gentes”. E não só “a gente do Porto” não podia ser mais diferente da de Lisboa, como adesse tempo não usava a palavra “lisboeta” como substantivo, mas sim como adjectivo... pejorativo! Portanto, como já se percebeu, o que ele queria dizer, com esse trocadilho mal-amanhado, era que a ponte da Arrábida, por ser tão bonita, “dava raiva aos de Lisboa” — sendo óbvio que me considerava um desses “mouros” que os portuenses identificam pela “pinta”, como nós fazemos em relação aos estrangeiros. 

 

NESSA altura, e como eu já tinha desistido do que estava a fazer, tive a infeliz ideia de comentar que também gostava muito das outras duas pontes. E ele, encantado por poder mostrar sabedoria a um “lisboeta”, pôs-se a dissertar acerca das “de D. Luís” e “de D. Maria I”, do trabalho de Eiffel... até se interromper, intrigado por me ver sorrir.

Na realidade, até foi penoso dizer-lhe que não era bem assim, pois só a ponte ferroviária é que era de Eiffel, não a rodoviária; que o nome correcto desta era “Ponte Luiz I”, e não “de D. Luís”; que a outra não era “de D. Maria I” nem “de D. Maria II”, mas sim “de D. Maria Pia” (por sinal mulher desse rei D. Luís); e, finalmente, que mesmo uma tal “Ponte de D. Maria II” (que, de facto, existiu) era outra, pênsil (no lugar da tristemente célebre das Barcas, de que apenas restavam os dois grandes pilares de pedra e o lugar da portagem).

Aí chegado, não resisti a atirar-lhe uma última pedra:

— Já agora: “Maria Pia” foi também o nome dado ao hospital pediátrico que tem traseiras para a Praça Pedro Nunes, onde eu nasci em 1947. Sim, meu caro, eu sou natural da freguesia de Cedofeita, a mais antiga do Porto, o que quer dizer que, além de não ser lisboeta, se calhar até sou mais tripeiro do que o senhor.

Em seguida, com um aceno e um sorriso que me esforcei para que parecesse amistoso, despedi-me, e dei uma corrida para a paragem do eléctrico que, para meu alívio, já assomava ao longe.

 

E CONFESSO que já não me lembraria de nada disso se não me deparasse, um dia destes, com as placas toponímicas que, aqui em Lagos, estão de ambos os lados da ponte a que todos chamamos “de D. Maria” — mas que, mais propriamente, se chama “Ponte D. Maria II”, onde o ordinal romano dissipa possíveis confusões entre as Marias possíveis. Aliás, também era como “D. Maria II” que as minhas saudosas tias do Porto se referiam à costureira que ia lá a casa, quando, nas suas conversas de croché, era preciso distingui-la da que a precedera, no tempo da minha avó — e que era, obviamente, a D. Maria I...

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